A Biblioteca de RaquelEntrevista – A Biblioteca de Raquel http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br Raquel Cozer Mon, 18 Nov 2013 13:27:27 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 George R.R. Martin, o 'senhor dos Tronos', na primeira entrevista ao Brasil http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/05/19/george-r-r-martin-o-senhor-dos-tronos-na-primeira-entrevista-ao-brasil/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/05/19/george-r-r-martin-o-senhor-dos-tronos-na-primeira-entrevista-ao-brasil/#respond Sun, 19 May 2013 11:00:16 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=4023 Continue lendo →]]> Seria apenas meia hora de conversa por telefone e o assunto não poderia fugir muito de “Wild Cards”, série  coletiva sobre super-heróis que George R.R. Martin edita e na qual escreve desde os anos 1980. Duas das condições com as quais chegou até mim, no mês passado, a possibilidade de entrevistar o autor de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, que nunca tinha falado a jornais do Brasil, país que está entre aqueles onde ele tem hoje mais leitores.

Confesso que bateu certo desconforto à medida que lia entrevistas com ele. GRRM é um bom entrevistado, mas a paixão que sua obra desperta e a atenção implacável de fãs fez com que já fosse questionado sobre todo assunto que se possa imaginar, e as respostas tendem a se repetir. No fim, até ajudou falar de um tema menos abordado, “Wild Cards”, cujo volume 1 a editora LeYa acaba de pôr nas lojas (o segundo e o terceiro saem em novembro). E, é claro, fui encaixando na conversa as “Crônicas” e “Game of Thrones”, a série da HBO baseada nos livros.

Em “Wild Cards”, como nas “Crônicas”, GRRM dá um tratamento mais adulto, por assim dizer, a temas que tendem a ser associados ao juvenil (super-heróis, fantasia), com violência, política e sexo como pano de fundo. A boa notícia para os fãs das “Crônicas” é que GRRM hoje quase não ocupa seu tempo escrevendo para “Wild Cards”, embora editar a obra seja, como ele diz, “o trabalho mais desafiador” nesse sentido.

“Wild Cards”, que sai aqui com tradução de Alexandre Martins, Edmundo Pedreira Barreiros e Peterso Rissatti, surgiu como RPG nos anos 1980. GRRM convidou vários amigos nerds a escrever contos a partir dessa premissa: um vírus alienígena que, em 1946, infectou terráqueos com sintomas imprevisíveis, matando muitos, dando superpoderes a uns e deixando outros deformados. Nisso, já foram 22 livros, histórias isoladas com personagens que se repetem e cujo fio narrativo é unificado. Cabe a GRRM reescrever muita coisa e fazer o conjunto funcionar, “conduzindo a sinfonia como se fosse uma big band”.

O resultado foi a capa da Ilustrada deste domingo, com os principais trechos da entrevista,  cuja íntegra você pode ler abaixo. Também questionei vários autores sobre a relevância de GRRM na literatura fantástica.

O escritor americano em foto da mulher, Paris McBride

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Folha – O sr. se tornou escritor devido ao interesse por quadrinhos, como costuma dizer, e em “Wild Cards” o sr. leva os super-heróis dos quadrinhos para a literatura. Como é usar na literatura um tema tão característico das HQs?
George R.R. Martin –
 Bom, nós buscamos, nos livros, fazer uma abordagem mais realista. Para começar do básico: eu amo quadrinhos, cresci lendo quadrinhos, mas há muitas convenções no formato que não fazem sentido quando você pensa nelas. A noção de que alguém que consegue superpoderes vai imediatamente comprar uma roupa de spandex e combater o crime. Não acho que isso funcione. No mundo real, se você conseguisse superpoderes, se eu tivesse a habilidade de voar, bem, provavelmente eu ainda seria um escritor, com a diferença de que não andaria mais de aviões. Isso iria mudar minha vida, mas não como acontece nos quadrinhos.

Então essa foi a situação quando pensamos no básico. Partimos da premissa: ok, depois da Segunda Guerra, algumas pessoas conseguiram superpoderes. Poderes e habilidades que vão muito além daquelas dos simples mortais. E começamos a pensar como o mundo seria transformado, como a vida das pessoas atingidas seria transformada.

Outra diferença entre “Wild Cards” e outras histórias de heróis é que a série lida mais diretamente com a história real e, conforme ela passa, muda seus rumos.
Sim, o realismo nos fez colocar os super-heróis no tempo real, interagindo com o mundo real. Por exemplo, eu lembro, quando era garoto, que estava na escola e apareceu o Homem-Aranha. Ele estava no ensino médio, igual a mim. Houve uma identificação imediata, e pude entender problemas pelos quais ele estava passando. Então me formei no ensino médio e entrei na faculdade, e o Homem-Aranha terminou o ensino médio e entrou na faculdade, Peter Parker fez isso. Estávamos mudando.

Mas saí da faculdade em quatro anos, e o Homem-Aranha levou uns 20 anos para se formar. E, depois que saiu da faculdade, ficou preso naquela coisa de ser um cara de 20 e poucos anos que tinha acabado de sair da faculdade. E ficou um tempo casado, e depois não estava mais casado, disseram que o casamento nunca tinha acontecido. Você pega um livro do Homem-Aranha hoje e ele ainda tem lá seus 23 anos e saiu da faculdade poucos anos atrás. Lembro ter lido livros do Homem-Aranha em que ele estava envolvido em demonstrações dos anos 1960 conta a Guerra do Vietnã… Obviamente, o tempo dos quadrinhos não faz o menor sentido. Ele era da minha geração e agora é parte de uma geração muito mais jovem.

O Superman veio à Terra nos anos 1920, eu acho, e aterrissou pequeno e se tornou o Superman público no final dos anos 1930, mas, agora, se você lê os livros, ele veio à Terra em 1995 ou algo assim. Os criadores ficam revisando a história para mantê-los eternamente jovens, e essa é uma armadilha na qual decidimos não cair em “Wild Cards”. Queríamos fazer algo mais ligado ao tempo real. Heróis que conseguiram seus superpoderes em 1946, data do primeiro “Wild Cards”, e tivessem 20 anos naquela época, bem, agora eles estão aposentados, estiveram casados, têm filhos e casaram de novo e seus filhos cresceram. Eles tiveram todo tipo de problema que as pessoas têm ao longo da vida. Ser superforte ou lançar raios pelos dedos não eliminam os problemas que as pessoas têm na vida real.

E como surgem esses novos heróis com o tempo, à medida que os outros envelhecem?
Isso depende. A genética de “Wild Cards” é complicada. É uma mudança na estrutura genética e se torna uma… Se os dois pais têm o vírus do “Wild Cards”, então a criança seria um Carta Selvagem [na tradução da LeYa, embora o título do livro seja em inglês, os infectados recebem no texto o nome em português], mas poderia também morrer, porque 90% das pessoas que pegaram o vírus e tornaram Rainha Negra [gíria para morte usada nos livros], como dizemos, morrendo. E 10% viram Curingas [personagens que ficam deformados], só um em cem se torna Ases e acabam como super-heróis. O bebê infectado tem as mesmas chances de qualquer um, não é algo simplesmente herdado.

Os Curingas, nesse sentido realista, são importantes para tratar de questões como o preconceito, não?
Sim, sim. Muitas mutações não são boas. Queríamos dizer: ‘Sabe, se você sofresse uma mutação como essas dos quadrinhos, seria possível que isso não fosse tão bom, e isso é muito mais provável que uma mutação boa, inclusive’. Isso torna a história diferente de qualquer outra da Marvel, da DC Comics, Universal, a comunidade Coringa e a existência desse segundo time junto com os superpoderosos Ases, isso é algo que ninguém mais faz.

Acontece de um autor escrever para “Wild Cards” algo que o sr. acha que não vai caber na história como um todo e isso ser vetado? Como é escrever em equipe para um autor tão acostumado a escrever sozinho [como em “As Crônicas de Gelo e Fogo”]?
Isso acontece o tempo todo. Vem acontecendo há 20 anos, e por isso sou necessário como  editor. Os autores escrevem suas histórias e meu trabalho principal, além de também escrever as minhas, é juntá-las. E há um grande trabalho de reescrita envolvido, porque as histórias nunca ficam perfeitas juntas de primeira. Às vezes, tenho autores que escrevem duas cenas que se contradizem ou que se duplicam, e essencialmente eu conduzo a sinfonia aqui, como se fosse uma “big band”, com todos os instrumentos e personagens funcionando juntos.

É um trabalho difícil. Editei uma série de publicações ao longo dos anos, mas o trabalho envolvido em “Wild Cards” é certamente o mais desafiador tipo de edição, simplesmente  porque você tem que pensar em equipe e ao mesmo tempo conseguir boas histórias dos escritores. Criamos um mecanismo pelo qual o criador de cada personagem revisa o texto quando seu personagem é usado por outro escritor. Além de mim como editor, os escritores interagem. Então, se alguém vai usar um personagem meu, como o Tartaruga, posso dizer:  “Não, ele não diria isso dessa maneira”, ou “Ele nunca faria isso”. Muita reescrita. Mas, felizmente, a maior parte dos escritores faz o trabalho com muita vontade, adora escrever sobre esses personagens e esse universo.

Há algum personagem de outros autores que você gostaria de ter criado?
Provavelmente o Dorminhoco, que foi criado por Roger Zelazny, um amigo querido e um dos melhores escritores que a ficção científica já produziu. É muito original, parte do time original [personagens do primeiro livro]. O Dorminhoco é flexível, tem suas características,  mas pode caber em praticamente qualquer história dos outros autores, às vezes como herói, às vezes não. E ele é um homem do nosso tempo. Ele vive em 2013, era um garoto quando o vírus chegou à Terra, em 1946, então ele se lembra de um mundo diferente. Toda vez que ele vai dormir, não sabe como vai acordar [se com poderes de Ás ou deformidades de Coringas] ou se vai acordar. É um personagem incrível, provavelmente o mais icônico do “Wild Cards”.

Atualmente a série está saindo em vários países, mas a maior parte das histórias se passa nos Estados Unidos. Não pensam em torná-la mais global?
A maior parte das histórias se passa em Nova York. Mas, de tempos em tempos… O quarto livro da série, chamado “Aces Abroad”, é um livro no qual os personagens fazem uma turnê mundial, visitam várias cidades. Acho que eles passam pelo Brasil, embora não tenham uma história aí. Mas temos uma história no Peru. E temos histórias no Oriente Médio, na Europa Oriental e Ocidental, no Japão. Depois, muitos volumes depois, aparecem histórias que têm uma base mundial. A série que começa com “Inside Straight”, volumes 18, 19 e 20, começa em Los Angeles, passa para o Egito e o Oriente Médio, e lá e personagens se envolvem com a ONU. Tentamos dar um sabor mais global. Soube que no Brasil pediram por esses livros, gostaria de sediar histórias aí. Isso seria divertido.

Os direitos de adaptação foram comprados pela Universal para o cinema. Em que pé está isso? O sr. lida bem com a ideia de transformar a série em um único filme, algo que não quis aceitar para “As Crônicas de Gelo e Fogo”?
Bom, Wild Cards não é bem uma história, são centenas de histórias, é um mundo. Esperamos que o primeiro filme conte uma história de um grupo particular de personagens, e, se fizer sucesso, o segundo filme pode ser com um time completamente diferente de personagens. E pode ser no passado, no futuro. Temos centenas de personagens e histórias. É uma franquia incrível, que funciona para uma série de filmes, que é o que esperamos conseguir, ou para uma série de TV, o que pode vir a acontecer se os filmes fizerem sucesso. Mas agora estamos no estágio inicial, Melinda Snodgrass [uma das autoras da série e coprodutora, com GRRM, do fillme] está escrevendo o roteiro, está no segundo rascunho. Estamos esperando.

Os leitores no Brasil o conhecem mais como autor de fantasia que de ficção científica. É diferente criar uma e outra?
Não há grande diferença. Em ficção científica, você tem aliens e naves espaciais; em fantasia, tem dragões e cavaleiros, mas de toda forma está contando histórias, e o coração de toda história, no passado, no presente ou no futuro, seja ficção científica, seja mistério, seja romance, o coração de qualquer história são os personagens. Se você tem bons personagens, que os leitores achem interessantes e com os quais se preocupem, sua história vai funcionar. Não importa o gênero.

William Faulkner, o grande escritor americano, uma vez disse que o coração humano em conflito consigo mesmo é a única coisa sobre a qual vale a pena escrever, e acredito nisso. Não acho que o gênero importe tanto.

Se o gênero não importa tanto, e considerando que o sr. gosta de histórias muito realistas, envolvendo questões políticas, violência, sexo, nunca pensou em escrever abrindo mão da fantasia?
Gosto de violência, sexo e política, é verdade [risos]. Mas fantasia, bom, eu amo a fantasia, ela permite usar a imaginação. Quando eu era criança, vivia uma vida de imaginação. Éramos pobres, não tínhamos dinheiro, não íamos a  lugar nenhum. Vivíamos perto de um canal, e eu olhava a água, e eu via embarcações o tempo todo indo a Hong Kong ou Japão ou França ou Brasil, eu olhava para as bandeiras e imaginava quem estava naqueles navios. Daí começava a pensar também como seria estar em naves espaciais ou com aliens. É tudo imaginação. Amo ser levado a mundos fabulosos de maravilhas e cores.

O sr. ainda tem tempo para se dedicar a “Wild Cards”? Os leitores de “As Crônicas de Gelo e Fogo” permitem isso?
Bom, alguns ficam irritados. Mas, dito isso, hoje não escrevo muito para “Wild Cards”. Faço a edição, que é algo que demanda tempo, mas não tanto quanto escrever as histórias. Gostaria de escrever mais para “Wild Cards”, adoro esse mundo, adoro meus personagens nesse mundo, mas não posso até terminar as “Crônicas de Gelo e Fogo”. Essa é a minha prioridade, ainda tenho dois livros a terminar e isso vai me tomar alguns anos, e ainda tenho a série de TV vindo atrás de mim.

Como é a receptividade de “Wild Cards” entre os fãs? Eles não chegam a ser intensos como os das “Crônicas de Gelo e Fogo”, imagino.
Eles existem em menor número. “As Crônicas de Gelo e Fogo” são a coisa mais bem-sucedida que fiz, então tem mais leitores. Mas os fãs de “Wild Cards” também sabem ser intensos, formam relações com personagens diferentes. Odeiam alguns, amam outros, discutem quem venceria quem numa briga. É sempre interessante. No geral, adoro a intensidade dos fãs. Você quer que eles se importem, que discutam os livros e implorem por lançamentos. A pior coisa para um escritor é quando os leitores não se importam, o que é a triste verdade para a maior parte dos escritores.

Sobre a relação com fãs, o sr. já disse que prefere não ler o que eles escrevem, como as fanfics [histórias de fãs usando universos de um escritor], inclusive para não ser acusado de plagiá-los. Como lida com a ideia de que um dia deixará sua história de herança para outros, como aconteceu com Tolkien?
[pausa] Bem, algum dia, eu imagino, sim…

Digo, um dia num futuro distante, é claro.
Certo [risos]. Não me preocupo com o futuro distante. Acho que o presente me mantém ocupado o suficiente.

O sr. lida com muita pressão para terminar as “Crônicas”, há quem até tenha medo de que não consiga terminar o sétimo livro, dado que já se passaram mais de 20 anos desde que começou a escrever e ainda faltam dois títulos. O sr. costuma dizer que guarda na memória, mas não tem algo no computador, uma linha geral, algo que eventualmente sirva como base num futuro distante?
Tenho alguma coisa anotada, sei para onde está indo a história e estou seguindo isso. Não tenho todos os detalhes anotados, isso é algo que prefiro pensar à medida que escrevo.  Essa é a aventura de escrever, quando os personagens e a linha da história vão para lugares não imaginados, mas sei as principais coisas que vão acontecer. Sou um escritor lento, reescrevo tudo. Não imagino que isso vá mudar, então as pessoas que ficam aflitas com a chegada dos meus livros vão ter que se acalmar e lidar com isso. Não posso ir mais rápido só porque estão impacientes.

Quando o sr. começou a criar “Wild Cards”, não se usava a internet. Com o tempo se popularizaram não só a internet como ferramentas de pesquisa, como o Google, e de organização. Há escritores que usam Excell, que nem é uma ferramenta nova, para se organizarem. Como lida com essas tecnologias?
Elas foram bastante úteis para “Wild Cards”, preciso dizer. Quando começamos, e estamos falando do início do início dos anos 1980, com o primeiro livro saindo em 1987, não havia internet. Muitos dos escritores nem computadores tinham, era tudo na base da máquina de escrever. Tínhamos de redigitar as histórias, e então havia ligações telefônicas, enormes distâncias a superar… Mas isso mudou com o tempo.

Na metade dos anos 90, vários de nós já estávamos na internet, e existia um serviço, que não existe mais, da General Electric, que tinha fóruns e mensageiros, nos quais você podia tratar assuntos privados. Criei diferentes tópicos sobre “Wild Cards”, e discutíamos ali, o que certamente era bem mais fácil que fazer ligações telefônicas e mandar pelo correio os manuscritos ao redor dos Estados Unidos. Agora, é claro, está tudo na internet, mandamos tudo por e-mail. Isso faz as coisas mais fáceis quando você trabalha em grupo.

Agora, com as “Crônicas de Gelo e Fogo” não uso nada disso. Sou só eu, sozinho, com meu computador, escrevendo histórias. Sim, quando termino posso mandar por e-mail ao meu editor, mas é algo muito básico para escrever. Não uso nenhum tipo alta tecnologia. Na verdade, faço a maior parte do meu trabalho num DOS [sistema operacional comum nos computadores até os anos 1990].

E também tenho algo que não chega a ser uma tecnologia nova, que é função de busca do computador, o que torna fácil encontrar detalhes como as cores dos olhos dos personagens.  Tenho um arquivo gigante que contém todos os cinco livros e posso pesquisar neles para evitar contradições.

O sr. trabalha como consultor de “Game of Thrones”, série de TV baseada nos livros, sem poder de veto, até onde entendo. Como lida com as mudanças feitas pelos roteiristas, que estão mais comuns nesta terceira temporada? Há alguma solução deles que o sr. chegou a achar melhor do que o que estava no livro?
Bom, adoro a série de TV, mas gosto mais dos livros. Foi de grande ajuda para mim, em relação a série, o fato de eu ter trabalhado em TV por dez anos, nos anos 1980 e 1990 [foi roteirista das séries “Além da Imaginação” e “A Bela e a Série”]. Não trabalhava na criação, adaptava material de outros escritores. Então sei o tipo de alterações que são necessárias, em geral por questões práticas, como ter só uma hora por episódio, ter que encaixar tudo num certo orçamento.

O orçamento de “Game of Thrones” é grande na comparação com outros do tipo, mas ainda é um orçamento. Você não tem todo o dinheiro de que precisa nem pode contratar todos os atores de que gostaria. Com isso, personagens têm de ser combinados, outros têm de ser modificados, situações também. Temos dez episódios por temporada. Sempre disse que o ideal seriam 12 episódios, o que permitiria aproveitar mais personagens e situações que infelizmente ficam de fora, mas seria caro. Dez episódios é o que temos, e acho que fazem um trabalho excelente com isso. De algumas das mudanças eu gosto, por outras não são sou tão apaixonado. Mas entendo a necessidade de todas elas.

Pode dar exemplos de mudanças de que goste ou não?
Acho que as novas cenas que estão inventando para o programa estão funcionando, muitas são perfeitas, algumas das melhores da série estão nesses episódios. Sinto falta de algumas das cenas com o Mance [Ryder] ou diálogos que foram cortados. Algumas mudanças eu não faria. Fiz os livros por razões que eram minhas e prefiro na maior parte dos casos elas tal como estão nos livros.

Impressiona a dimensão geográfica e genealógica que a história toda tomou. Ela chega a fugir do seu controle?
Isso é uma razão por que demoro tanto escrever. A história foge constantemente do meu controle. Reescrevo muito, vou seguindo os personagens e às vezes eles me levam pelo caminho errado, então tenho que voltar e entender o que deu errado. E então reescre, coloco numa ordem diferente, até entender como deve ser.

O sr. usa com muita frequência os chamados cliffhangers [estratégia para prender o leitor ao final de cada capítulo]. Diria que é uma forma de arte?
Sim, definitivamente. Esses dez anos em que fiz televisão me ensinaram muito sobre isso. Não sei como é no Brasil, mas, na TV americana, os programas têm muitos comerciais. E é preciso que a cada ato, considerando que um programa tem de quatro a cinco atos em uma hora, exista o chamado “act break”, que pode ser um cliffhanger, embora não precise ser. Algo como uma revelação, um personagem que descobre algo, alguma coisa que impeça que o espectador mude de canal no comercial e que o faça pensar no que vai acontecer.

Essa é uma técnica boa, que prende as pessoas na história. Em “Game of Thrones”, mesmo não tendo intervalos, eu queria que cada capítulo terminasse com um “act break”. Alguma coisa acontecendo do final de cada capítulo, por exemplo, da Arya, que fizesse você imediatamente querer saber o que acontecerá no capítulo seguinte. Mas você não pode saber isso imediatamente, porque agora tem que ler um capítulo do Tyrion ou do Jon Snow. E então você lê o capítulo do Tyrion e ali acontece algo que faz você querer ler o próximo capítulo dele. O ideal é que funcione com todos os personagens. Não é uma técnica fácil, mas acho que tem funcionado.

Qual o sr. diria que é o tema central das “Crônicas” e o que elas refletem da visão que o sr. tem de política ou das sociedades atuais?
Um tema central é certamente a  disputa de poder. As relações de políticas e de governos. Mas prefiro pensar menos em temas e mais em histórias individuais, o que nos leva de volta aos personagens, à questão do coração de que falou Faulkner. Estou mais interessado no que Jon ou Dany faria agora do que nas falhas das sociedades médias como um todo. Os personagens se tornaram muito verdadeiros para mim e espero que também para ao leitor.

O mundo é minha criação. Não estou interessado em criar uma alegoria ou fazer um comentário político ou social, mas inevitavelmente meus pontos de vista e minhas opiniões estão lá, porque eles fazem parte de mim.

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Marta Suplicy e José Castilho comentam os novos rumos das políticas de livro e leitura http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/04/11/livro-e-leitura/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/04/11/livro-e-leitura/#comments Thu, 11 Apr 2013 11:00:50 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3890 Continue lendo →]]> As políticas de livro e leitura do país deixarão de ser atribuição da Fundação Biblioteca  Nacional (FBN) e voltarão à estrutura do Ministério da Cultura, em Brasília.

A decisão da ministra Marta Suplicy, ainda não divulgada oficialmente, foi consolidada na última segunda-feira, quando José Castilho Marques Neto, presidente da Editora Unesp, aceitou o convite para voltar ao cargo de secretário-executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), com mais responsabilidades do que tinha de 2006 a 2011.

A reportagem de capa da “Ilustrada” de hoje traz a explicação dessa novela toda (que venho  acompanhando há dois anos, mas que começou nos tempos de Monteiro Lobato).

Abaixo, minhas entrevistas com Marta Suplicy e com José Castilho Marques Neto –concedidas respectivamentes por e-mail (via assessoria de imprensa) e telefone apenas após conclusão da edição de hoje, ontem à tarde. Falei ainda com Ana de Hollanda, citada na reportagem. Galeno Amorim, ex-presidente da FBN, a quem liguei e escrevi desde terça, não foi localizado.

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Marta na Comissão de Cultura da Câmara, em foto de Joel Rodrigues/Folhapress


Pouco após assumir o MinC, no fim do ano passado, a sra. disse à Folha estar estudando a volta das políticas de livro e leitura para Brasília. Qual sua avaliação do desempenho da Biblioteca Nacional nesse setor e por que resolveu dissociar a área dela?
Marta: A ida da Diretoria de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB) para a FBN incumbiu  e priorizou ações para a FBN que atrapalharam a sua função principal e desvirtuou o processo que estava sendo implantado de formação de leitores a partir dos eixos do Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL.

Quais as prioridades da área de livro e leitura em sua gestão como ministra?
Marta: Retomar a centralidade do PNLL na condução da política pública do ministério para a área. Trabalhar fortemente na institucionalização de uma política de Estado para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas buscando torná-la perene, supragovernamental e que não sofra processo de descontinuidade na troca democrática de governos. E também não deixar de focar na formação de leitores, na modernização de bibliotecas publicas que precisam ser centros culturais de inclusão e no incentivo aos mediadores de leitura.

A gestão de Galeno Amorim  priorizou a compra de acervo para bibliotecas, com um programa de aquisição de livros a preços baixos. A primeira fase do programa foi encerrada sem ser finalizada, já que intermediários, como editores e pontos de venda, não entregaram todos os livros pedidos pelas bibliotecas. Galeno previa para junho um segundo edital, que corrigiria problemas do primeiro e no qual bibliotecas que não receberam livros na primeira fase teriam créditos. Esse edital será lançado?
Marta: Não. A necessária política de acervo para as bibliotecas públicas será reavaliada pelos novos responsáveis com a diretriz de valorizar o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas e a construção de um verdadeiro sistema de bibliotecas que atenda o leitor do século 21.

Quem ficará responsável pela participação do Brasil na feira de Frankfurt e pelas políticas de internacionalização da literatura brasileira?
Marta: A Fundação Biblioteca Nacional, tendo Renato Lessa  como responsável.

Tive a informação de que a sra. nomeará José Castilho Marques Neto para comandar essas políticas. Essa informação procede? Por que o escolheu?
Marta: Sim,  porque ele é um excelente quadro propulsor do melhor programa de política de livros e leitura que já tivemos.

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José Castilho Marques Neto, em foto de José Carlos Barretta/Folhapress

Você foi secretário-executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura de 2006 a 2011. Sua função agora será a mesma?
Castilho: O enfoque do PNLL é o mesmo, mas seu papel na estrutura do ministério será mais preponderante. Será um papel não apenas de conselheiro, mas de coordenação das políticas implementadas de livro, leitura, literatura e biblioteca. O PNLL antes só chegava nas bordas.

Quais serão as prioridades na sua gestão?
Castilho: Temos uma pauta que foi consenso no Congresso Nacional de Cultura, em 2010, e que precisa ser implementada. Essa pauta prevê principalmente a formação de uma política de Estado da cultura, ou seja, uma institucionalização dessas políticas. Esse é o ponto inicial de uma ação do PNLL, que está na proposta que estou levando ao ministério.

O primeiro ponto é a institucionalização do PNLL em lei, porque precisamos de um plano nacional de longo prazo. O PNLL tem de ser elevado do patamar de decreto em que se encontra agora. A segunda questão é criar um organismo representativo e que tenha autoridade em financiamento para tratar dessa política. Isso seria o Instituto Nacional de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas. Terceiro, temos que finalmente projetar e instituir o Fundo Setorial Pró-Leitura.

Esse fundo foi pensado como fruto da desoneração de 2004 [quando a cadeia produtiva do livro deixou de pagar PIS/COFINS, que chegava a 9% do faturamento, e se comprometeu a pagar 1% do faturamento para estimular políticas de livro e leitura], que até hoje não foi regulamentado. Isso é importante para criar um recurso permanente para o Instituto Nacional do Livro.

De quanto seria a arrecadação desse fundo e por que a ideia não avançou?
Castilho: A estimativa em 2010 era que com o fundo se arrecadasse R$ 50 milhões por ano. Com a desoneração, o governo deixou de arrecadar R$ 500 milhões ao ano. Não foi para a frente porque não houve ação incisiva do governo e porque o setor empresarial não tocou voluntariamente nessa questão.

E como acha que a cadeia produtiva receberá o retorno dessa discussão?
Castilho: Acho que as editoras entendem a importância de um fundo para estimular ações de livro e leitura, embora, obviamente, como faz muito tempo que o assunto não vem à tona, possa render alguma polêmica. É importante registrar que, durante esse período, até 2009, o setor privado, até como resposta à questão da desoneração, criou o Instituto Pró-Livro, com apoio da Câmara Brasileira do Livro, do Sindicato dos Editores de Livros, da Abrelivros, e fez ações importantes em parceria com o governo, como a pesquisa Retratos da Leitura.

O setor privado não se furtou a contribuir para o desenvolvimento do plano e também deu uma resposta à questão da desoneração. Mas o investimento ainda é muito aquém do que foi acordado, que era de 1%. Hoje essa contribuição é voluntária, então não chega a 1% do faturamento do setor.

Qual é hoje o orçamento do PNLL? Durante a última gestão, foram anunciados R$ 373 milhões sob o guarda-chuva do PNLL, mas abrangendo ações externas ao MinC.
Castilho: Não sei como está isso exatamente agora. Combinei com a ministra de, nos próximos 15 dias, fazer um levantamento do que é tudo isso, qual o orçamento, onde está, o que está comprometido, o que ainda vai entrar.

Como era o orçamento do PNLL até 2011, quando você ainda estava lá?
Castilho: Trabalhamos de 2008 a 2010 com média de R$ 90 milhões para o fomento à leitura, modernização de bibliotecas, dentro do orçamento do programa Mais Cultura, do MinC. Até 2006, a média era de R$ 6 milhões, então houve de fato um interesse do governo. Quando começou a implementação do plano, que incluía a formação de agentes de leitura, compra de livros para bibliotecas, esse arcabouço passou de R$ 6 milhões para R$ 90 milhões.

Esse foi o patamar possível naquele momento para as ações de implementação dos quatro eixos do plano. Na ocasião, o dinheiro foi dirigido para os dois primeiros eixos, democratização de acesso e formação de mediadores. Os outros dois são a economia do livro, que foi basicamente o que aconteceu na gestão do Galeno, e a ampliação da comunicação sobre a importância do livro e da leitura, com campanhas. Isso fizemos muito pouco.

O Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas foi criado, nos anos 90, dentro da Fundação Biblioteca Nacional. Ele irá para Brasília, também, assim como o Proler?
Castilho: Aí é uma questão da história do livro e da leitura no MinC. Toda a política de formação de bibliotecas, a própria ideia de um Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, residia até o governo FHC na Secretaria do Livro, no MinC. No primeiro governo Lula, essa secretaria foi extinta e as atribuições passaram para a FBN, que tinha a Diretoria do Livro e o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas, dando a normatização, acompanhamento técnico, fazendo compras para bibliotecas, os famosos kits.

Tudo isso o SNBP fez até agora. Mesmo durante o PNLL, mesmo com o surgimento da Diretoria do Livro e Leitura em 2008 no Minc, essas funções eram primeiro pensadas no PNLL, equacionadas e orçadas e planejadas na Diretoria do Livro e Leitura e executadas pelo SNBP.

Agora, qual a lógica disso tudo? Você tem uma segmentação em vários níveis de instâncias de decisão e encaminhamento, e acabam caindo gerenciamento e execução num órgão que não deve fazer isso, a Biblioteca Nacional. Isso é política pública voltada para os municípios, não para a Biblioteca Nacional. A própria Elisa Machado [que coordenava o SNBP na gestão Galeno Amorim] defendia que o sistema deveria ser sediado no MinC dentro de um órgão específico.

Se essas atribuições foram alocadas na Biblioteca Nacional, foi porque houve um desmanche institucional [no governo Collor, quando o Instituto Nacional do Livro foi esvaziado e virou departamento da FBN]. Minha divergência com a política implementada pelo Galeno é que caminhávamos para a institucionalização em Brasília e daí ele levou tudo para o Rio.

O Proler também fica na DLLLB. A questão física ainda não se resolveu, mas a tendência é ir para Brasília. O importante é a separação [em relação à FBN].

Você comentou que no primeiro governo Lula as políticas também tinham voltado para o Rio. Não se perde muito com essas idas e vindas?
Castilho: Foi um redesenho do MinC na gestão inicial do Gil, quando entenderam que a Secretaria Nacional do Livro não teria espaço em Brasília. Na época não participei da discussão. E ela foi extinta. Segundo me disse o último secretário nacional do livro do FHC, Ottaviano de Fiore, essa era uma proposta deles também. Naquele tempo, a secretaria ficou muito restrita à distribuição de kits para bibliotecas. Não havia formação de mediadores, incentivo.

Então veio o PNLL, em 2006, que costurou e deu um sentido aos investimentos públicos na área de desenvolvimento de formação leitora. O que se esperava a partir de 2010 é que fizéssemos essa transformação em uma política de Estado permanente, em vez de ficar só distribuição de livros. Que o apoio não parasse aí, mas que formasse mediadores que, por sua vez, de fato formassem leitores. Que trabalhasse no nível da comunicação e finalmente no mecanismo de incentivo da indústria. Fecharíamos toda a cadeia, da criativa à distributiva e leitora.

Embora tenha sido criticado por partir de uma lista criada por editoras, dando margem a um desencalhe de livros de pouca qualidade, o programa de aquisição de acervos para bibliotecas proposto por Galeno Amorim [com a participação de toda a cadeia produtiva e com livros comprados a R$ 10 pelas bibliotecas] distribuiu mais livros que a média dos anos anteriores. Que regularidade tinha esse trabalho antes?
Castilho: A distribuição de kits nunca foi algo dirigido dentro de um projeto coerente e de uma proposta de biblioteca. Isso começou em 2009, dentro do Mais Cultura, quando instituímos no PNLL o conceito de Biblioteca Viva, que não é só um acervo de livros, mas é dinâmica, de eventos culturais, um pólo aglutinador digital. Dentro dessa lógica começamos a fornecer também a complementalão de acervos de bibliotecas públicas.

O programa proposto pelo Galeno permitu, pela primeira vez, aos bibliotecários a escolha de seus acervos, em vez de centralizar as escolhas na FBN, que antes não levava em conta as especificidades locais. Foi um avanço, não foi?
Castilho: Sim, com certeza, não só a escolha como a compra direta pelos bibliotecários. Um dos programas que quero discutir com a ministra é um que existe já com êxito no Ministério da Educação, que é o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Uma das propostas é verificar a viabilidade do Dinheiro Direto na Biblioteca Pública. Nada melhor que a biblioteca, que conhece seus usuários e seus leitores, faça a compra direta a partir de um dinheiro recebido diretamente. Isso é um ponto positivo do programa do Galeno e é uma discussão antiga e que acompanhou os debates do PNLL, assim como a compra direto pelas livrarias nas cidades em que as bibliotecas estão. Isso é perfeitamente coerente com o espírito do plano.

O segundo edital proposto pela FBN tinha melhorias em relação ao primeiro, como o fato de as bibliotecas apresentarem suas sugestões de livros antes de as editoras serem convidadas a participar. Esse edital deveria sair em breve, beneficiando inclusive bibliotecas que, por problemas na primeira fase, não receberam os livros. Ele será lançado?
Castilho: Isso vai ser analisado, tem que fazer parte desse diagnóstico. Tem alguma possibilidade de lançar, embora eu entenda que a ótica do incentivo público deve ser mais o fomento, sem interferência no mercado. Acho que o trabalho deve ser mais no sentido de mediar leitores, fazer campanha, promover acesso. Uma coisa é desonerar, tentar algumas facilidades para a comercialização do livro, outra é interferir diretamente na cadeia da comercialização.

Quando você coloca um programa como o do livro popular, do Galeno, no qual o governo compra determinadas quantias de livro a um preço xis com o objetivo de que, além da distribuição em bibliotecas, iniciar um ciclo de vendas do setor editorial, como foi colocado… Porque foi colocado isso, o Programa do Livro Popular ser não só um programa de livros para bibliotecas, mas para estimular a cadeia comercial a lançar mais livros a R$ 10.

Não acho que seja um caminho correto, porque interfere numa atribuição que é própria do mercado, numa dinâmica de mercado. Não precisa o governo colocar verba para esse tipo de atividade. Ele tem que dirigir essa verba para formação de leitores, modernização de bibliotecas, fazer uma ação no sentido de incentivar os negócios, não interferir neles.

De certa maneira, a ideia do Programa do Livro Popular, de livros a até R$ 10, combina com uma das bandeiras da Marta Suplicy no MinC, o Vale-Cultura.
Castilho: O simples fato de o mercado editorial ter um instrumento como o Vale-Cultura vai levá-lo a investir em livros mais baratos. As editoras vão trabalhar com esse novo consumidor, que tem o Vale-Cultura no bolso, em vista. O mercado mesmo vai dar essas soluções. Assim como aconteceu quando, anos atrás, o mercado começou a se especializar em livros de bolso e de baixo custo. Temos exemplos excelentes no Brasil de livros vendidos a R$ 5, R$ 10, R$ 20, por editoras que não recebem nenhum incentivo.

O livro de baixo custo não precisa ser incentivado diretamente pelo governo, ele pode ser incentivado a partir de ações políticas culturais, que abram pontos de cultura, facilitem a divulgação desses livros, em vez de o governo interferir numa ação que o mercado pode resolver sozinho. A garantia de um investimento desses é muito tênue. Você vai colocar nisso um caminhão de dinheiro em detrimento da aplicação de outros programas de maior retorno, como a modernização de bibliotecas, para algo que o governo não domina nem deve dominar.

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'Não comam Lacta nem bebam guaraná': as revistas modernistas no Brasil http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/04/01/nao-comam-lacta-nem-bebam-guarana-as-revistas-modernistas-no-brasil/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/04/01/nao-comam-lacta-nem-bebam-guarana-as-revistas-modernistas-no-brasil/#comments Tue, 02 Apr 2013 00:15:57 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3817 Continue lendo →]]> A primeira edição da “Klaxon”, a mais famosa revista modernista do Brasil, lançada a 15 de maio de 1922, trazia um anúncio com as palavras “coma Lacta” dispostas na página  num estilo um tanto concretista, movimento que só surgiria décadas depois. A segunda edição incluía um anúncio do guaraná Espumante, não menos criativo, com alternativas de bebida rabiscadas –assim como o da Lacta, assinado pelo poeta Guilherme de Almeida. São esses:


Mas as propagandas eram modernas demais para os empresários, que deram para trás e cancelaram anúncios previstos para as edições seguintes. Como resposta, no quarto número, os klaxistas soltaram uma nota debochada, assumindo seu papel de “únicos representantes do mais alto gosto paulista”. Orientavam: “NÃO COMAM LACTA NEM BEBAM GUARANÁ”.


A história  acima está no ótimo “Modernismo em Revista: Estética e Ideologia nos Periódicos dos Anos 1920” (Casa da Palavra), de Ivan Marques, que narra a curta e tumultuada trajetória das sete principais revistas modernistas da década de 20 no Brasil  –e que terá lançamento nesta quarta, dia 3, às 19h, na unidade Fradique da Livraria da Vila, em São Paulo.

Escrevi sobre o livro no início do mês passado, numa capa da Ilustrada que incluía o já citado aqui “A Revista do Brasil no Século XIX”.

Segue, abaixo, a entrevista feita via Facebook com o Ivan Marques.

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Qual foi o papel das revistas dentro do modernismo no Brasil?
As revistas modernistas, não só no Brasil, foram um dos principais veículos de atuação das vanguardas, que normalmente são associadas com a destruição –da velha arte, dos velhos conceitos. Mas aqui elas tiveram um papel diferente. Desde “Klaxon”, que foi a mais ousada, lançada logo depois da Semana de 1922, as revistas tiveram um papel construtor. Foram mais um espaço de debate e de autocrítica do modernismo do que propriamente de ataque das convenções. As revistas são a principal demonstração da conjunção de esforços que foi necessária para articular o modernismo num país atrasado, pré-moderno, como o Brasil.

E que influência tiveram sobre a produção artística?
Nelas saíram muitos textos que só tempos depois apareceriam em livros. Poemas de Drummond, que se tornou poeta respeitadíssimo só pela atuação nas revistas. Em livro, ele só estrearia em 1930. Todos os mineiros surgiram nelas: além de Drummond, houve Pedro Nava, Emílio Moura. Os grandes poemas de Manuel Bandeira saíram primeiro em revistas e só depois, em 1930, no livro “Libertinagem”. Capítulos inéditos de “Macunaíma” também saíram antes nelas.

O debate das revistas é profundo e atualíssimo. Diz respeito às condições de produção de arte e literatura de vanguarda num país periférico como o Brasil. Na Argentina, elas tiveram a mesma repercussão. Acho que, na década de 1920, elas foram mais importantes do que boa parte do que foi publicado em livros, até porque a edição de livros era bastante restrita. Olhar essas revistas em conjunto, e não separadamente, como faziam os estudos anteriores, dá uma ideia mais exata da construção do modernismo brasileiro. Pela comparação, é possível corrigir uma série de ideias equivocadas, repetidas nos manuais e nas histórias literárias.

Que tipo de ideias equivocadas?
Para começar, a ideia de que a vanguarda de 1922 foi destruidora, polêmica. Como disse, o esforço de construção e de aprofundamento crítico da produção modernista estava em primeiro plano. Outro exemplo: os manuais dizem que a revista “Festa”, do Rio, era espiritualista e universalista. Mas a leitura da revista mostra que a preocupação deles era também com a arte nacional. Também se diz que o nosso “primeiro modernismo” ou “modernismo heroico” se preocupou apenas com questões estéticas. O que as revistas mostram, desde o começo, é a preocupação com a busca da identidade nacional. Para os modernistas, a afirmação dessa identidade era fundamental para que o movimento brasileiro não fosse apenas uma imitação leviana das vanguardas estrangeiras. Nas revistas o peso das questões ideológicas é grande, ao lado da discussão estética, que está quase sempre atrelada à questão nacional.

Quais foram os critérios para escolher as sete revistas para o livro?
Busquei as que existiram no período do chamado “modernismo heróico”, dos anos 1920. A primeira delas, “Klaxon”, é de 1922. A última, “Antropofagia”, de 1928. É o período forte da cultura modernista, a fase de combate. Também busquei revistas que tiveram impacto nacional, não apenas presas aos seus grupos de origem. Essas sete revistas existiram por conta do esforço das mesmas pessoas. À medida que uma desaparecia, outra surgia. Daí o debate pôde ser aprofundado ao longo da década. Mário de Andrade foi a figura que costurou a história das revistas. Além de ser um dos criadores de “Klaxon”, foi o principal coadjuvante das mineiras “A Revista” (BH) e “Verde” (Cataguases). Foi ele o responsável por essa visão construtora.

Quando você fala sobre impacto nacional, considerando uma entrevista como a “Verde”, do interior, você se refere a impacto nos grandes centros, no eixo Rio-São Paulo, ou elas repercutiam também em outros Estados e regiões?
Sim, repercutiam em outros Estados. Vários modernistas, sobretudo Mário, se preocuparam em distribui-las para todo o Brasil e para fora dele. Uma revista como a “Verde” foi genuinamente um órgão nacional do modernismo, embora fosse feita por rapazes de uma pequena cidade de Minas. O mesmo se pode dizer de “A Revista”. Os mineiros foram responsáveis por ela, mas foi um porta-voz de todos os modernistas em 1925. Essas sete formam um conjunto importante.

E no entanto os próprios responsáveis por elas, como Rosário Fusco, ainda no caso da “Verde”, as chamariam de “folclore”. Como você vê isso?
Essa questão é interessante. Os modernistas, depois de velhos, parecem ter tido certa vergonha dessa fase do modernismo, como quem tem vergonha da própria infância. Mas elas foram importantes, sim. Os textos que publicaram, de criação e de crítica, são da maior relevância. Talvez essa “folclorização” (= desvalorização) do modernismo tenha começado em 1942, com a conferência de Mário sobre os 20 anos do modernismo. Ele disse que tudo fora uma brincadeira, uma orgia. Esse balanço de Mário, como o depoimento do Fusco, é exagerado.

As revistas foram importantes não só para o desenvolvimento da cultura modernista, mas também porque a publicação de livros nos anos 1920 ainda era escassa. Elas talvez tenham sido a principal obra dos modernistas na década. No caso de “Verde”, com certeza a revista foi a principal coisa que fizeram. Com exceção de poucas obras (“Macunaíma”, de Mário, “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald), o movimento modernista quase não produziu livros nos anos 1920. A criação circulava nas revistas. E também o debate, a autocrítica. Ali o modernismo brasileiro foi encontrando a sua cara, seus caminhos e seus impasses

Você comenta no livro que boa parte dos textos não eram assinados. Esses textos são de autoria facilmente identificável?
Na maioria dos casos, sim. Quando as revistas foram reeditadas e ganharam os estudos individuais, nos anos 1970, 1980, ainda era possível verificar a autoria com os modernistas ainda vivos. Há casos em que não foi possível. Explico no livro que, de fato, essas ideias não pertenciam a um autor só, mas diziam respeito ao conjunto dessas vozes modernistas que se exprimiam nas revistas. O questionamento da autoria, no final, também diz respeito à ação da vanguarda. Havia o interesse de fortalecer a ideia de grupo, de ações que não eram individuais.

Curiosamente, os modernistas acabaram construindo vozes tão particulares, tão pessoais: Mário, Oswald, Drummond, Bandeira. É impossível confundi-los. Mas nas revistas as ideias pareciam mesmo não ter autoria específica. Pertenciam a todos.

Como essas revistas eram produzidas?
À exceção da “Festa”, que teve um mecenas, não havia dinheiro para a produção delas. O que havia eram vaquinhas literárias, apoios localizados. Elas acabavam por falta de condições. Mas também porque é difícil publicar por muitos anos uma revista dessa natureza, que tem mesmo o caráter efêmero tão frequentemente atribuído às ações de vanguarda. Sem dinheiro nenhum, público nenhum, elas duraram pouco. Sofriam do que foi chamado “mal dos três números”. No terceiro número, desapareciam, como ocorreu com “Estética” (RJ) e “A Revista” (MG).

Você escreve que as crônicas se tornaram uma das melhores traduções do modernismo. Embora, na verdade, sejam anteriores ao movimento. De que maneira  o traduzem?
Sim, elas eram importantes e praticadas desde o século 19. A hipótese é que, a partir da década de 1920, a crônica encontrou sua linguagem específica, seu jeitinho brasileiro, sua leveza, simplicidade. A partir da influência que sofreu do movimento modernista. Talvez a crônica seja mesmo das melhores traduções do modernismo. E nas revistas houve os primeiros experimentos. Crônicas de Drummond, já definindo novos parâmetros para esse gênero. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, todos beberam nessa fonte modernista.

As crônicas traduzem o modernismo em suas características fundamentais: temas cotidianos, linguagem coloquial, tom despretensioso etc. É a “vida ao rés-do-chão”, como disse muito bem Antonio Candido, num texto famoso sobre a crônica brasileira. E ele pensava, claro, nessa tradição moderna da crônica, formada a partir do modernismo.

Que legado que essas revistas nos deixam, olhando 90 anos depois?
Elas são o testemunho vivo de um dos períododos mais agitados da cultura brasileira. E mostram, entre outras coisas, que o modernismo não se limitou à Semana de Arte Moderna e menos ainda à cidade de São Paulo. O movimento em 1922 era ainda imaturo e se aprofundou ao longo da década. Um dos canais desse aprofundamento foram as revistas. A leitura delas, com 90 anos de distância, mostra as dificuldades de construção do modernismo num país como o Brasil. A gente tem muitas vezes a ideia de que o país estava “pronto” para o moderno, mas isso não é verdade. Esse “moderno” custou caro e exigiu uma série de esforços.

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'A Questão Finkler', humor e melancolia http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/03/31/a-questao-finkler-humor-e-melancolia/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/03/31/a-questao-finkler-humor-e-melancolia/#comments Sun, 31 Mar 2013 03:54:03 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3803 Continue lendo →]]> “A Questão Finkler”, de Howard Jacobson, 70, ficou conhecido em 2010 como o primeiro romance de humor em quase 25 anos a ganhar o prestigioso Man Booker Prize, para títulos em língua inglesa. Descrição um tanto injusta: mesmo sem o humor seria um livraço.

A obra, que acaba de ser publicada pela Bertrand Brasil, trata de três amigos ligados ao judaísmo, no bom e no mau sentido. Há Julian Treslove, um gói obcecado pela improvável chance de ter raízes judaicas. Há também Libor Sevcik, judeu tcheco de quase 90 anos a quem a origem importa menos que a morte de Malkie, sua mulher por mais de meio século. E há Samuel Finkler, judeu tão avesso a Israel que prefere usar “Sam”, negando a origem, na assinatura de seus best-sellers de autoajuda filosófica.

O humor predomina nas discussões em torno da questão judaica (“finkler”, sobrenome do amigo, é como Treslove chama todos os judeus), mas há também melancolia em temas nada relacionados a política. Escrevi sobre o romance na última semana na Ilustrada. Segue abaixo a entrevista com Jacobson, autor de opiniões contundentes sobre o debate em torno da questão judaica, o humor na literatura e o futuro dela como um todo.

 ***

“A Questão Finkler” aborda a experiência de ser judeu na Inglaterra. No que um judeu inglês é diferente de qualquer outro?
Escrevi o livro para tentar entender isso. Ser judeu na Inglaterra não é como ser judeu em nenhum outro lugar, ao menos nos lugares que aparecem na literatura. Não é como ser judeu em Israel ou nos EUA. Os judeus ingleses sempre se comparam aos americanos com inveja pela posição confortável que estes ocupam na cultura. Em Nova York há milhões deles, escritores, músicos ou pintores. Dá para dizer que a cultura americana é quase judaica, pensando no romance americano contemporâneo, por exemplo.

Já na Inglaterra somos uma minoria, só 250 mil no país inteiro. Não fazemos barulho, não pedimos atenção. Não é como se quiséssemos sair do país. Estamos bem aqui. Mas não é uma boa ideia emanar a confiança judaica na Inglaterra. Nos EUA, eles já faziam parte da cultura quando a cultura surgia. Hollywood, os quadrinhos, a literatura, o que você pensar: os  judeus estavam lá. Aqui não, há uma cultura firme, anglo-saxã, que não lhes é hostil, mas não é selvagemente receptiva. Você tem de ir com cuidado.

Fala-se muito no humor inglês e também no humor judaico. Como o sr. definiria o seu tipo de humor?
Sou um autor inglês antes de ser um autor judeu, mas, após tanto escrever sobre a questão judaica, fiquei em dúvida: “Será que pensam em mim como um autor estrangeiro?” Eles pensam e não pensam. Acho que o modo como junto comédia e tragédia, a maneira como brinco com algo sério ou trágico, o jeito como meu humor se arrisca com a dor, isso não é algo que um inglês faria com naturalidade, e eles têm certa dificuldade de entender isso. Não é uma batalha, não quero bancar o mártir. Não estive em campos de concentração, não estou em agonia, só sinto que minha voz não é bem inglesa, é um pouco estrangeira.

O sr. cita no livro uma frase do cineasta Ken Loach sobre o antissemitismo ser compreensível dada a postura do governo israelense. O próprio Finkler, personagem que dá nome ao livro, é antissionista e chega a ser acusado de antissemitismo. Como diferenciar o que é crítica e o que é antissemitismo?
Esse é um tema que exige clareza. Não acho que quem critica Israel seja necessariamente antissemita. Não é errado criticar [o premier israelense] Netanyahu e suas políticas. Muitos judeus são críticos a Israel, muitos israelenses o são. Mas há um problema quando se criticam não só as políticas israelenses, mas os judeus e o sionismo como um todo. Quando vejo isso, desconfio das motivações. A Europa não tem uma boa história com judeus. Gente da França, da Itália, da Alemanha, da Inglaterra, o primeiro país a expulsar os judeus, deveria hesitar antes de criticar o sionismo, que começou como necessidade. Quem não vê essa necessidade, ao menos isso, não entende que àquela altura tínhamos um problema. Não significa que o sionismo tenha terminado bem ou que não saibamos que é um problema para árabes e palestinos. É um problema real e sério.

E é uma discussão central no romance.
Decifrar se as críticas são antissemitas ou não é algo que ocupa muito a vida dos ingleses. Na vida intelectual inglesa há uma obsessão sobre Israel, chegando a ir além de uma posição política honesta. Não há país que você possa amar politicamente e não há motivo para amar Israel politicamente, mas terá Israel cometido crimes para os quais caibam nomes como fascismo e nazismo? E, se não, porque há quem use essa denominação? Especialmente em jornais intelectuais de esquerda… Escrevo para um deles, o “Independent”, e ao longo dos anos tive discussões com outros colaboradores do jornal. Entre eles, Israel virou uma obsessão. Deixou de ser um lugar real e virou fantasia. Assim como para muita gente que ama Israel.

Para os personagens de “A Questão Finkler”, não há uma Israel real. Ninguém vai lá, não há nenhum israelense. Tudo são pessoas trocando impressões, idealizando. Isso é o que me interessa. Podemos ter essa conversa de novo e de novo, e foi o que tentei recriar, essas discussões randômicas, inclusive a parte cômica disso. Temos essa conversa tantas vezes que às vezes olhamos um para o outro e pensamos: lá vamos nós de novo…

Como é a sua relação com Israel?
Já escrevi e fiz documentários sobre Israel. Anos atrás escrevi um livro, “Roots Schmoots”, uma viagem pelo mundo judaico e que termina na Lituânia, de onde veio minha família. Também fiz um documentário para TV, no qual fui crítico a coisas de que não gostei, coisas terríveis que ouvi de ambos os lados. Você já foi a Jerusalém?

Não, nunca.
Jerusalém dá uma sensação extraordinária de viagem no tempo. Você se sente de volta ao mundo bíblico. As pessoas vivem batalhas lá, emocionais, intelectuais, religiosas, como há 5.000 anos. Toda vez que vou a Israel me sinto extasiado e perturbado com isso. Sou um judeu da diáspora, acostumado a viver longe de um grande número de outros judeus. E cresci amando ser alguém de fora. Para um escritor, é útil nunca se sentir em casa, porque a escrita tem a ver com expressar um distanciamento, a sensação de falta de abrigo..

Isso também é importante para o humor. Gosto dos grandes autores israelenses, Amos Oz, A.B. Yehoshua, David Grossmann, são todos maravilhosos. Mas nenhum deles é engraçado. Há uma seriedade, um sentimento de pertencimento. Ser um escritor judeu em Israel não deixa espaço para o humor, isso seria uma espécie de luxo. Quando você lê esses autores, acha que está brincando de ser judeu. Eles devem achar que sou judeu de mentirinha. Até me sinto meio culpado, como se eles fossem os verdadeiros judeus, e não eu.  Depois repenso, não, não é verdade. Porque o humor também faz parte do que é ser judeu. É o humor mais sério que existe, e no entanto é humor. Consigo entender porque os israelenses não têm isso, mas acho que a nova geração pode ser capaz. Eles conhecem essa sensação de falta de abrigo em Israel, muitos pensam que aquele não é o país em que querem viver.

Apesar do humor, “A Questão Finkler” também é bastante melancólico. Como foi conciliar essas duas características?
Sempre gostei dessa mistura em obras de outros autores e não sabia se poderia fazer. Acho que esse livro resultou mais melancólico que meus livros anteriores por causa da minha idade, que já torna tudo mais melancólico, e também porque foi a primeira vez que escrevi sobre alguém bem mais velho que eu. Normalmente escrevo sobre jovens ou personagens da minha idade.

Acho que Libor, o personagem mais velho que perde sua mulher, é o melhor personagem que já criei. Muitos me disseram que ele os fez chorar, e me fez chorar, inclusive. Eu não sabia que se tornaria uma história tão dramática. Só queria escrever sobre um homem que chegou perto dos 90, ficou viúvo depois de um casamento longo e apaixonado, e não sabia o que fazer com a vida agora. Vi pessoas idosas sofrendo com a intensidade do amor, da saudade. É chocante e lindo ao mesmo tempo. É lindo que sintam isso e aterrorizante que ainda sintam isso. Isso faz você perceber que nunca haverá uma época em que sentirá paz.

Sou meio como Treslove, o personagem obcecado pela tragédia, fico imaginando como será quando ela acontecer. Temo saber como seria se minha mulher, a mulher que eu amo, morresse antes de mim, se saberia lidar com isso. Escrevi “Finkler” a partir desse medo, e foi uma nova maneira de escrever para mim. Escrever não sobre o que sei, mas sobre o que temo. O medo me fez escrever com peculiar intensidade e tristeza, e isso atravessa o livro.

O sr. acha que foi a melancolia que fez o livro ser premiado?
Acho que sim. Apesar do lado triste, esse foi o primeiro livro de humor a vencer o prêmio em muitos anos. Não é um livro propriamente cômico, embora faça rir. É um livro trágico, mas é uma boa história dizer que um romance de humor levou o prêmio. Quando o júri anunciou o prêmio e começou a descrever o vencedor, antes de falar o nome do livro, destacou  a melancolia. Jurados disseram que o livro os fez chorar. É difícil alguém ganhar um prêmio só fazendo as pessoas rirem. Ótimos romances, como “Dom Quixote”, fazem rir, mas as pessoas desmerecem isso. Não gostam de rir e de se reconhecer rindo ao ler, não reconhecem isso como algo pertencente à literatura. Eles estão errados.

De todo modo, a melancolia torna mais fácil a aceitação. A mistura de riso e dor,  juntar as duas na mesma frase, fazer alguém rir e chorar, essa é minha ambição.

O sr. escreveu um romance sobre o fracasso literário logo depois de ganhar o Man Booker Prize. Houve alguma relação entre esses dois fatos?
Sim, se chama “Zoo Time” e acabou de sair na Inglaterra. Muitos ficaram surpresos com isso. É claro que isso demanda certa confiança, e ganhar um prêmio importante me fez sentir mais à vontade com um assunto tão sério.

Há um problema sério em relação ao que as pessoas estão lendo. Aqui neste país 5 milhões de pessoas compraram “Cinquenta Tons”. Antes disso adultos liam “Harry Potter”, não só crianças, mas adultos. Então você presta atenção no estado da leitura, vê o nível de degradação a que esse cenário chegou. Vejo estudantes com uma nova forma de arrogância, dizendo que não gostam de determinado livro porque ele não é bom, sem parar para pensar que talvez não gostem por incapacidade de entender.

Eu me preocupo com a saúde da literatura. Comecei a escrever esse livro antes de ganhar o prêmio, então ganhei, e quando você ganha um Booker você não faz mais nada por seis meses –aliás, se não tomar cuidado, não faz mais nada pelo resto da vida. Depois de seis meses, eu me perguntei se conseguiria voltar a esse livro e escrever sobre o fracasso literário. Descobri que sim. Poderia escrever sobre todas as coisas que me preocupam, o fato de livrarias e bibliotecas estarem fechando, a desvalorização da escrita, a perda de concentração dos mais jovens. A ideia de um romance ser algo em que você mergulha por várias semanas sem querer fazer mais nada, tudo isso está mudando.

Poder falar isso do ponto de vista de quem conhece o sucesso, de modo que as pessoas não pudessem dizer que sou apenas um velho fracassado amargo sobre a vida, bem, isso ajuda.

 

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Três anos numa favela indiana -e um dos melhores livros de 2012 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/03/22/tres-anos-numa-favela-indiana/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/03/22/tres-anos-numa-favela-indiana/#comments Fri, 22 Mar 2013 22:16:31 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3764 Continue lendo →]]>

“Behind the Beautiful Forevers”, um dos livros mais elogiados do ano passado nos Estados Unidos, vencedor do National Book Award e assinado pela jornalista Katherine Boo –que já tinha no currículo um Pulitzer–, saiu por aqui nesta semana.

Não com o melhor dos títulos, é verdade. A Novo Conceito, editora de best-sellers românticos que garantiu esta pérola da não ficção para seu catálogo, escolheu batizá-lo com um infeliz “Em Busca de um Final Feliz”, acompanhado de subtítulo ainda mais triste: “Quando a existência é definida pelos sonhos de pessoas reais, a esperança surge”.

(Ao menos achei boa a tradução do texto, por Maria Angela Amorim de Paschoal, cujo trabalho eu não conhecia –vi que ela verteu alguns dos best-sellers da Novo Conceito.)

Está certo que o título original não fucionaria na tradução literal: “Behind the Beautiful Forevers” significa “atrás dos belos para sempre”, referência a uma propaganda da L’Oreal com os dizeres “Forever Beautiful. Beautiful Forever”, em cartazes ao redor da favela de Annawadi, na Índia –cenário dessa belíssima reportagem de Katherine Boo.

A esperança do subtítulo é certamente a última sensação que terá o leitor do livro, sobre o qual escrevi no último sábado na Ilustrada. De 2007 a 2010, Katherine Boo conviveu com moradores de Annawadi, favela criada em 1991, à beira do aeroporto internacional de Mumbai, por indianos do interior que foram trabalhar numa ampliação de pistas  –efeito parecido com o que os arredores de Brasília testemunharam nos ano 60.

O que impressiona, a ponto de incomodar, é que a todo instante você esquece que se trata de uma não ficção. Tudo ali é verdade, diz Boo –e, para provar, tem mais de mil horas de vídeos, além de fotos, gravações, anotações–, mas ela resolveu, como descreveu a repórter especial Patrícia Campos Mello na resenha também publicada na Ilustrada, “extrapolar magistralmente a técnica ‘mosca na parede’, consagrada pelo novo jornalismo, ao atribuir sensações aos personagens e lhes descrever as intenções”.

Segue a íntegra da conversa que tive por telefone com a autora na semana passada. As fotos da favela de Annawadi acima e no começo da entrevista são de Indranil Mukherjee/AFP/Getty Images. A foto de Katherine na favela, mais abaixo neste post, é de M. Jordan Tierney.

***

Quando você escolheu como personagem o garoto Abdul Husain, ele ainda não tinha sido acusado de um crime [de causar a morte de uma vizinha deficiente, que na verdade ateou fogo a si mesma]. Esse é só um dos desenrolares surpreendentes das histórias que você escolheu. Como foi essa seleção dentro do universo de 3.000 habitantes da favela?
No começo, tentei seguir tanta gente quanto possível. Porque não procurava a história mais sensacional, procurava histórias reveladoras sobre a comunidade. Uma coisa que pensei é que talvez a história de uma cidade que em mutação estivesse escondida em sua pilha de lixo. Você podia ver a prosperidade por meio dela. O lixo é o currículo da cidade, seu raio-X. Quando começaram a chegar garrafas de vinho vazias às pilhas, isso foi um sinal importante.

O que me interessava sobre Abdul era ele ser esse garoto que, essencialmente, sustentava uma família de 11 pessoas. Sozinho. Trabalhando com lixo. E  o que parecia patético é que, para outras pessoas da favela, isso dava a ele uma vida melhor, mais chance que qualquer um lá. No momento em que conheci ele e sua família, cheguei a achar que estava assistindo ao surgimento de uma família de classe média. Me interessava não só a fonte de renda, mas a volatilidade que vinha com isso e que tornava a vida difícil.

Você diz que não procurava a história mais sensacional, mas encontrou –os acontecimentos com Abdul são inacreditáveis.
Uma coisa estranha, quando você trabalha filmando, porque trabalhei muito com videotape, é rever momentos. Quando vi a fita do momento em que descobri [a acusação contra Abdul e sua família]. Foi chocante… Àquela altura eu não fazia ideia do que ia acontecer. Não tinha ainda explorado o sistema judicial, não esperava que, havendo tantas testemunhas… Não esperava que três pessoas fossem parar na cadeia e que a coisa fosse se estender por tanto tempo. Mas há tantas histórias acontecendo, histórias que estão no livro, que demora até você descobrir qual a central.

Você precisou de tradutores para falar com a imensa maioria dos personagens. Como era esse trabalho, você sentia que perdia algo?
Tive dificuldade para encontrar tradutores que trabalhassem como trabalho, com muita paciência e precisão. O que eu fazia, já que estava filmando, era levar os vídeos para meu marido [o escritor indiano Sunil Khilnani] ou alguém em que confiasse e perguntar: “O que acha da qualidade dessas traduções?”. Tentei pegar gente muito precisa. E trabalhar com aquelas três jovens mulheres [as tradutoras] foi brilhante. Elas estavam comprometidas em ouvir o que as pessoas diziam, não em empacotar para consumo. Isso combinava comigo.

Sempre na tradução você perde algo. Nesta entrevista que estamos fazendo, algo se perderá. Mas você sempre pode procurar achar alguém que seja maníaco para fazer aquilo da maneira certa como você.

Depois de tanto tempo lá, como soube que sua investigação tinha terminado?
Acho que foi quando abri o jornal, um dia, e vi uma história de uns cavalos caindo de uma ponte. E pensei: esses devem ser os cavalos de Robert [um morador da favela que costumava pintar seus cavalos com linhas pretas para parecerem zebras]. Em dado momento, todo mundo na cidade estava prestando atenção nos cavalos caindo da ponte. Quando vi aquilo, a preocupação com os cavalos, isso enquanto eu escrevia sobre tantas mortes para as quais ninguém dava atenção, doenças, assassinatos e suicídios que ninguém registrava… Eu estava tão interessada, e foi tão triste perceber que a morte de dois cavalos fosse o que trouxesse o senso de justiça em Annawadi.

Você disse numa entrevista que decidiu fazer o livro ao ouvir amigos, num jantar, questionando se as transformações econômicas na Índia estavam mudando ou não a vida dos mais pobres. Pelo que você investigou, pode-se dizer que sim?
Não há dúvida de que a globalização trouxe mais riqueza para indianos, para a maior parte das pessoas. Nos aspectos mais ordinários, especialmente, foi uma grande mudança. O que diria é que não é tão simples quanto as estatísticas fazem parecer. E uma das coisas interessantes foi notar como as estatísticas eram diferentes do que se via no dia a dia. Há tanta morte e doença, malária, que nem entra nas estatísticas oficiais… Há muitas escolas que existem só no papel. Os índices de criminalidade, assassinatos, de nenhuma maneira refletem a quantidade de violência que há na sociedade. Não só em Mumbai, em todo lugar.

Não é como se a globalização não tenha melhorado nada para ninguém. Tenho certeza de que centenas de milhares de rendas tiveram crescimento significativo, mas ainda é muito difícil para os mais pobres.

Em entrevista recente à Folha, o escritor Suketu Mehta, de “Bombaim, Cidade Proibida”, disse que uma coisa que poucos sabem sobre Mumbai é que 60% da população vive em favelas, incluindo engenheiros, médicos, a classe média… Não era o caso de Annawadi, que era mais pobre do que isso.
Isso entra com a definição de favela. Há grandes favelas no centro da cidade, nas quais muita gente de classe média vive, e onde há muitos serviços. Essas são as mais famosas. No centro há poucos outros lugares para pessoas da classe média viverem. São lugares onde estudantes de faculdade ficam, porque é mais fácil se estabelecer. Mas meu trabalho era com os mais pobres.

Você visitou muitas antes de escolher Annawadi?
Estive por toda da cidade nos três primeiros meses. Desde o começo, estando no centro, me dei conta de que havia favelas com as quais não queria trabalhar, porque não eram representativas das experiências mais difíceis. Havia também similaridades entre as favelas da periferia. Mas o que me chamou a atenção em Annawadi foi que, como o aeroporto ao lado estava crescendo, as pessoas tinham essa ideia de que a vida delas também podia se transformar.

Você descreve momentos íntimos das pessoas em família, inclusive gestos durante o jantar, conversas. Você comenta ao final do livro que repetia entrevistas à exaustão para pegar os detalhes, mas muitas vezes eu me perguntava: ela estava lá quando essa cena aconteceu para descrever tão detalhadamente?
Se descrevo uma cena em que alguém faz um gesto, eu definitivamente estava lá. Também gravei tudo em vídeo, o que altera o processo de escrita quando você volta e revê a cena. Sempre usei áudio como jornalista, essa foi a primeira vez que usei vídeo desse jeito.

Algo desse material foi lançado em vídeo, ou você pretende fazer isso?
Nos Estados Unidos saiu uma versão em e-book com quatro vídeos curtos, um sobre a Fátima, a deficiente que ateou fogo a si mesma, outro sobre Manju, a garota que estava na universidade, outro sobre o trabalho de Abdul… Eu não estava registrando tudo para fazer um filme, era para minha própria capacidade de ser acurada depois. Para poder checar. E, quando falava sobre corrupção e dava nomes, isso me dava mais confiança por ter aquilo gravado.

E acho que há uma questão de privacidade. Nos vídeos há tanta gente fazendo tanta coisa… E não sou cameraman, não sei exatamente o que estou fazendo, as pessoas veem meus vídeos e riem. As pessoas me dizem para fazer um filme, mas não sei.

Uma coisas interessante desse trabalho foi que crianças na favela aprenderam e começaram a usar minha câmera. Eles pegaram vídeos incríveis. Perceberam que havia momentos… Como quando um catador de lixo que morreu. Ele foi espancado pela polícia, e um menino falou: “Me dá sua câmera”. E  tirou fotos. Ele sabia que o que os policiais tinham feito era errado. Foi um senso de poder que ele teve. Houve muitas situações como essa. Às vezes eu entrevistava e um menino de nove anos estava filmando [risos].

Você sabe quantas horas tem de filmagem?
Não sei… Acho que devem ser mais de mil horas, mas não sei exatamente quanto.

Outra coisa que Suketu Mehta fala sobre favelas, em comparação com as do Brasil… Não sei se você já esteve no Brasil.
Não. Meu marido diz que tenho que conhecer. Ele acha que é um dos lugares mais interessantes do mundo.  Leio tanto sobre as mudanças daí que queria mesmo ir. Mas não para escrever outro livro. Só para aprender.

Mehta diz que as favelas no Brasil são mais limpas e com mais infraestrutura, mas mais violentas. Você não conheceu as favelas daqui, mas acha possível comparar com o que conhece de comunidades pobres americanas, por exemplo?
Uma coisa que me impressionou é que há muita violência na favela indiana, mas não uma violência de arma de fogo. As brigas não terminam em morte tão rapidamente, e uma das coisas que penso é por quanto tempo vai ser assim na Índia. Daqui a dez anos será cheio de armas como nas cidades americanas? É uma questão em aberto.

Há violência, mas num grau diferente. O que tento mostrar no livro é que hesito quando falam sobre a Índia como uma sociedade não violenta, como se todos andassem pensando em Gandhi. Há muita violência, estupro, que não é registrada. E ninguém pode dizer o quanto porque não é registrado. Acho que, nas estatísticas que li, a Índia tem menos estupro que a Suécia, e a gente sabe que isso não é verdade. A realidade da vida feminina não entra nas estatísticas.

Por outro lado, nas favelas indianas o histórico sistema de castas local, de segregação, é menos rígido, pelo que você mostra.
Sim, e é por isso que tanta gente vai para lugares como Annawadi. Vão para a cidade grande e pela primeira vez podem escolher seu emprego, em vez de ter de exercer o trabalho designado para sua casta. Uma coisa interessante é que crianças de sete, oito anos, quando você pergunta a elas sobre suas castas, algumas nem sabem do que você está falando. Não é relevante. E você pergunta para as mães, e isso nem era segredo delas, só não é mais uma parte central de suas identidades.

Quando falo no livro da amizade entre [as adolescentes] Meena e Manju, o fato de Manju ser de uma casta um pouco superior, porque Meena é da casta mais baixa, isso não interfere na amizade delas. Mas as pessoas acima de 50 anos têm muita consciência de suas castas. Quando você vai para as vilas, na Índia, você vê os dalits [casta mais baixa] ainda vivendo longe da cidade –eles não são autorizados a viver dentro da vila.

Vivendo tanto tempo com eles na favela, foi possível não se envolver com o assunto da sua reportagem? Passar de observadora a personagem?
Tem um ponto em que você deixa de ser apenas jornalista e se torna apenas humano, sempre, nesse tipo de reportagem. Tem um ponto em que você tem que se envolver. Há um caso, no capítulo 16 do livro, quando uma mulher está sendo arrastada para fora de casa e atacada por homens bêbados, que achei que ia terminar em estrupo. Comecei a gritar. De uma maneira idiota e louca, acho que choquei todo mundo. Mas você faz julgamentos o tempo todo.

Com tudo o que investigou sobre a acusação contra Abdul e sua família, não poderia ter interferido no julgamento?
Meu deus, no curso inteiro do julgamento, que durou anos, Abdul nunca teve seu testemunho tomado. O juiz não queria, nem o advogado queria ter ligação nenhuma comigo. É como tentar ir para a polícia e falar há algo errado. Minha experiência com a polícia foi muito ruim. Há essa ideia de que você é jornalista e pode ajudar. Isso não funciona, pela minha experiência

Você acha que o livro pode ajudá-los em Annawadi? Ou já os ajudou?
Acho que sim. Uma das coisas que fiz, e acho que foi a coisa certa, foi me certificar de que o livro saísse exatamente ao mesmo tempo nos Estados Unidos e na Índia. Se fosse ser atacado, se dissessem que não era verdade, que isso ficasse claro para todos.

Mas, ao contrário, o que aconteceu foi que gente das classes mais altas e do governo indiano se assustou, disse que não fazia ideia. E começaram as conversas. Boas coisas aconteceram em todos os níveis a partir dessas conversas. Não é que o livro tenha mudado as coisas instantaneamente, mas acho que houve e há muita gente que se preocupa. Está havendo a discussão sobre o que fazer para que os hospitais tenham remédio, para que as escolas ensinem crianças em vez de apenas dar dinheiro aos políticos.

E, desde a primeira parcela de pagamento de direitos autorais do livro, que foi em agosto, eu comecei a devolver à comunidade, para ajudar em saúde e educação.

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"Me fascina o passado parecer mais intenso que o presente", diz John Banville http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/02/20/me-fascina-o-passado-parecer-mais-intenso-que-o-presente-diz-john-banville/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/02/20/me-fascina-o-passado-parecer-mais-intenso-que-o-presente-diz-john-banville/#comments Wed, 20 Feb 2013 20:57:03 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3664 Continue lendo →]]> O irlandês John Banville, autor do lindíssimo “O Mar” (Nova Fronteira), vencedor do Man Booker Prize 2005, vem neste ano para Flip, o que levou a Globo a programar seu romance mais recente, “Luz Antiga”, para junho. Minha entrevista com ele para o texto da Ilustrada de hoje foi motivada por outro lançamento, de “O Cisne de Prata” (Rocco), dentro da série de policiais que assina com o pseudônimo Benjamin Black. Falo um pouco do livro no link acima.

Desde 2006, quando começou a lançar policiais como Benjamin Black, inspirado pelos romances do belga Georges Simenon (1903-1989), Banville quase não escreve como Banville. Além de “Luz Antiga”, lançou só “Os Infinitos” (Nova Fronteira), que nem faz jus ao escritor que ele é. No mesmo período, foram sete livros como Black, com mais um previsto para este ano.

Em resumo, ele sofre mais para escrever como Banville, obcecado pela frase perfeita, e não vende tanto assim. Como Black, escreve com facilidade, sem nenhuma ambição de ser artista,  e lidera listas de mais vendidos. É assim que funciona e, ele diz, é absolutamente natural.

Ele fala também sobre as especificidades de seus romances policiais, a “conversão” a Benjamin Black e a Wikipedia, entre outros temas, na entrevista abaixo, concedida por e-mail.

Foto de Beowulf Sheehan

 ***

Em vez de centrar a história no ponto de vista de Quirke, o protagonista, “O Cisne de Prata” alterna capítulos na voz dele com as de outras personagens, incluindo a vítima. O resultado é que os leitores acabam sabendo muito mais do que o personagem que investiga a história. Por que optou por esse formato?
Acho romances policiais fascinantes do ponto de vista técnico. Nesse livro, foi interessante alargar a perspectiva e trazer, embora obliquamente, as vozes, ou ao menos as sensibilidades, de outros personagens. E com isso fazer Quirke desconhecer detalhes que outros personagens, e os leitores, sabem. Mas, enfim, Quirke geralmente progride por meio da ignorância dos fatos. O que admiro nele como protagonista é que ele não é um superdetetive. Se você quer o oposto de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, esse é Quirke. Ele é um pouco estúpido, como o resto de nós –humanos, em outras palavras.

O próprio Quirke é diferente de um protagonista que poderíamos esperar em um policial. Ele é um patologista que, em “O Cisne de Prata”, mente para a Justiça no único momento em que poderia ajudar na investigação. Como pensou esse personagem?
Quirke é movido pela curiosidade. Talvez eu esteja caindo num freudianismo barato, mas acho que o fato de ele mesmo não ter um passado do qual se lembre completamente o compele a mergulhar nas vidas de outras pessoas, a querer descobrir segredos alheios. Quando ele olha para trás, para anos anteriores de sua vida, há apenas um branco, e isso é algo que o atormenta. Então, quando encontra um “branco” que é um crime não resolvido, não resiste a investigar.

Assim como em “O Cisne de Prata”, que retoma o protagonista de “O Pecado de Christine”, em “Luz Antiga”, que também sairá neste ano no Brasil [pela Globo, em junho], você recupera um protagonista de romances anteriores. Esse é um procedimento comum em romances policiais, mas nem tanto fora da ficção de gênero. Por que voltar a personagens interessa ao sr.?
De fato não sei dizer por que retornei à história de Alex Cleave e de sua trágica filha Cass. Depois que leu “Eclipse” [inédito no Brasil], em que esses personagens aparecem, meu amigo Rodrigo Fresan [escritor argentino] me implorou para escrever um “livro de Cass”. “Luz Antiga” não é esse livro, mas revisita Alex e sua mulher, Lydia, dez anos depois da morte da filha. Devo ter achado que havia algo a resolver com Alex, Cass e o mistério da morte de Cass que continuava atormentando seus pais. É claro, Alex desconhece a conexão de Cass com Axel Vander, o crítico literário que Alex, que é ator, está prestes a interpretar num filme. Isso adicionou algum frisson para mim, como também, eu espero, para leitores familiares com “Eclipse”.

Quirke é atormentando pelo passado e pelo senso de perda, assim como Alex em “Luz Antiga”. O quão diferente é escrever sobre esse tema como Banville e como Black?
Bom, Quirke é atormentado de uma maneira diferente. O passado dele é um lugar terrível e escuro, uma espécie de Inferno anterior à morte. Para Alex, o passado é um mundo iluminado, que parece mais vívido para ele do que o mundo presente em que ele vive. Sempre me fascinou a percepção de que o passado sempre nos parece mais intenso que o presente.  Por que deveria ser assim? Afinal, o passado foi presente um dia, e tão normal e chato quanto o presente presente. A resposta, eu suspeito, é que como temos de viver o presente, não conseguimos vê-lo com clareza e, consequentemente, não o valorizamos. Apenas quando ele vira passado vemos como era extraordinário. Essa é uma tragédia de nossas vidas, que nós –a maior parte de nós– não conseguimos valorizar o que temos até que isso se perca.

Como Georges Simenon influenciou sua “conversão” em Black?
Nunca tinha lido Simenon [romancista belga, autor da série do inspetor Maigret] até um amigo, o filósofo inglês John Gray, me encorajar a ler o que Simenon definia como seus “romances psicológicos”. Quando li, fiquei deslumbrado. Esses livros, entre os quais estão “Dirty Snow”, “Monsieur Monde Vanishes” e “The Strangers in the House”, para ficar apenas em três, são para mim tão bons quanto qualquer coisa escrita no século 20, superiores aos trabalhos de Sartre ou Camus, por exemplo –Simenon é o verdadeiro romancista existencialista. Ocorreu a mim que deveria tentar escrever algo similar, usando um estilo simples e direto, um vocabulário restriro, e nenhum dos ornamentos “literários” que Banville usaria. Então Benjamin Black nasceu.

O verbete dedicado ao sr. na Wikipedia informa que o sr. chama romances policiais de “ficção barata”, mas com o aviso de que falta a fonte dessa informação. Essa é mesmo uma opinião sua?
Wikipedia! Sempre informando tudo ligeiramente errado. Escrevi em algum lugar, como ironia, que quando me tornei Benjamin Black descobri em mim uma capacidade para a “ficção barata”. Não era para ser levado a sério. É claro que existe muita ficção policial barata por aí, mas até aí também há muita ficção literária barata. O trabalho de Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Richard Stark, James M. Cain –se isso é barato, então me mostre o que é caro.

O sr. costuma dizer que escrever como Banville é muito mais trabalhoso que escrever como Black. Incomoda saber que Black interessa mais aos leitores?
Acho que eu me incomodaria se Banville vendesse mais do que Black. Black trabalha num gênero popular, e, por consequência, suas vendas são melhores. É simples assim.

O sr. tem publicado mais como Black do que como Banville –o placar desde 2006 está em sete a dois. É uma experiência mais satisfatória a de escrever sem se preocupar tanto com a estrutura?
Talvez não mais satisfatório, mas diferente. Eu gosto do trabalho que os livros de Benjamin Black envolvem e tenho orgulho desses livros, como um artesão teria orgulho de um trabalho bem feito. Black não exige tanto de si mesmo como Banville, o que é uma outra maneira de dizer que Black não é um artista nem tem essa ambição.

Como é ver seu trabalho adaptado para a televisão [as histórias de Quirke foram adaptados no Reino Unido]?
Sou muito interessado em cinema e TV. Escrevi alguns roteiros, sempre gostei disso. E o primeiro livro de Benjamin Black, “O Pecado de Christine”, começou como um roteiro de TV. Uns dez anos atrás foi convidado a escrever uma minissérie de TV, ambientada nos anos 50. Escrevi três roteiros de três horas de duração cada um. Quando ficou claro que eles não seriam filmados, tive a ideia de transformá-los em romance. E foi o que eu fiz.

O sr. já esteve no Brasil?
Sim, passei uma semana ou duas em São Paulo alguns anos atrás e visitei Paraty muito rapidamente no caminho para casa. Estou ansioso por ficar mais tempo desta vez.

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"O mau livro não fica --um romance demanda tempo", diz Isa Pessoa sobre nacionais http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/02/14/o-mau-livro-nao-fica-um-romance-demanda-tempo-diz-isa-pessoa-sobre-nacionais/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2013/02/14/o-mau-livro-nao-fica-um-romance-demanda-tempo-diz-isa-pessoa-sobre-nacionais/#comments Thu, 14 Feb 2013 16:16:54 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3588 Continue lendo →]]> O começo dos anos 2000 não foi bom para autores brasileiros de ficção. No momento em que nosso mercado mais se profissionalizou, com players internacionais comprando nacos de editoras locais, estruturas se tornando menos familiares e livrarias cobrando por espaço, perdeu quem não tinha alto potencial de vendas. No limiar do estereótipo, a disputa entre o vampiro hollywoodiano e o autor brasileiro a gente sabe quem ganhou.

O ano que começa traz indícios de um movimento contrário. Nenhuma grande editora vai desistir de seus best-sellers, mas é digno de nota que mesmo as que faturam bem, obrigada, com a fórmula conhecida queiram ampliar catálogo nacional. Ainda que seja em parte curioso reflexo de anterior interesse internacional. Foi tema de reportagem que fiz  para a Ilustrada de hoje.

A Isa Pessoa, diretora editorial e dona da Foz, ficou conhecida, nos anos 90 e 2000, como diretora editorial da Objetiva, justamente pelo investimento em nacionais –especialmente por colocá-los nas listas de mais vendidos, algo que virou exceção da exceção.

Cheguei a mandar perguntas a ela para a reportagem, mas vi as respostas tarde demais. Respostas muito boas, de quem conhece a edição e o mercado. Estão aí.

***

Você criou a Foz com foco na produção nacional contemporânea, certo? Que obras ficção de autores em atividade já estão planejados para este ano?
Sim, o foco é esse. Para este ano estão programados o novo romance de Tatiana Salem Levy, “Maranhão”, e o de Paulo Scott, “O Ano em que Vivi Só de Literatura”.

Estão planejados. Todos trabalhando para isso. Mas, se o autor não considerar sua obra suficientemente acabada, para publicarmos com todo cuidado necessário em 2013, não iremos apressar o lançamento em função de uma oportunidade do mercado, para o fim de ano ou alguma feira literária, por exemplo.

Já vi esse filme, não funciona: depois tudo passa, e o mau livro não fica. Um romance demanda tempo para ser escrito, editado, e durar.

Na Objetiva, você era conhecida pelo seu trabalho com autores nacionais. Agora, chega um momento em que outras grandes editoras estão demonstrando mais interesse na produção de ficcionistas contemporâneos. O que aconteceu, de um, dois anos para cá, para levar a esse movimento?
Não consigo imaginar ambição mais bela, como editora brasileira, do que publicar autores nacionais que vendam bem, que cheguem às listas, sejam lidos e queridos pelo público –e pela crítica também, aí a gente chega perto do paraíso.

Foi o que aconteceu, por exemplo, quando publicamos a coleção Plenos Pecados, na Objetiva, e por alguns anos os autores brasileiros ocuparam a lista de ficção, às vezes cinco ao mesmo tempo (Ubaldo, Verissimo, Torero, Noll, Zuenir). Mas isso aconteceu do final dos anos 1990, até 2000. Depois, não me lembro de tantos escritores nacionais irem para a lista ao mesmo tempo.

De dez anos para cá, os estrangeiros passaram a dominar as vendas, como sabemos, os índices de nosso mercado traduzindo o que acontece mundo afora, enfim globalizados “comme il fault”. As tiragens de ficcionistas brasileiros minguando, com exceções louváveis nessa fase comercialmente ingrata para os autores nacionais.

A disputa internacional pelos autores e por séries de sucesso do livro que vira filme esquentou nosso mercado no início do milênio: todo mundo querendo o novo cachorro, o novo vampiro. E o autor brasileiro ofuscado, sem atenção do marketing das editoras, vendendo pouco. Mas um editor também precisa dos prestígio dos prêmios literários, da presença midiática na Flip –o que aguçou nos últimos anos, a meu ver, a busca por brasileiros que ocupassem esse lugar, ampliassem essa pesquisa por ficcionistas talentosos, de preferência jovens.

Vale ressaltar, nesse contexto, a compra de livros pelos programas governamentais, incluindo regularmente a ficção brasileira, que passaram a representar uma saída comercial para a publicação de autores nacionais de qualidade.

Em geral, a ficção nacional não entra na lista de mais vendidos. Acha possível, sendo realista, que esse cenário mude nos próximos anos?
A ficção nacional pode atrair mais leitores, sim, não tenho dúvida disso. Quando a editora investe mais na campanha de lançamento de um livro, e esse livro é bom, condição “sine qua non”, ele pode alcançar patamares maiores de venda do que se fosse lançado numa baixa tiragem, sem atenção da mídia, do editor, dos livreiros.

Prêmios literários, presença na Flip etc. são fatores determinantes na divulgação do nome do autor junto ao público, o que contribui para o círculo virtuoso, quando o livreiro dá mais atenção ao livro, e o consumidor também. Mas, se o livro não consegue o bom boca a boca, esqueça. É isso, no frigir dos ovos, que fará o livro vender mesmo, superar uma carreira regular, modesta, e alcançar a lista dos mais vendidos.

Claro que um autor nacional consegue escrever esse livro, por isso precisa de tempo para fazê-lo, de competência, de diálogo com o editor, de condições financeiras para tanto, de divulgação qualificada etc. Isso custa caro, e o editor precisa investir, naturalmente se o livro convencê-lo.

Como você seleciona autores para a Foz? É diferente hoje de como era quando você selecionava autores para a Objetiva, pensando, por exemplo, no maior número de agentes literários hoje em atividade no país?
A oferta é muito grande. Hoje talvez maior ainda, tendo em vista –também– o maior número de agentes literários. Todo dia recebo pelo menos um original novo para avaliar.

São basicamente os mesmos critérios de avaliação, ainda mais rígidos, na verdade, em função de um cronograma enxuto –a qualidade do texto, o potencial do autor, sua disposição em trabalhar junto com o editor, esculpir esse texto, esgotar todas as chances de aprimorá-lo.

Acho que me tornei uma editora mais exigente, sim, em função de um novo projeto profissional.

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'O bichinho carrega nas costas mais do que deveria', diz curador do Jabuti http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2012/10/23/o-bichinho-carrega-nas-costas-mais-do-que-deveria-diz-curador-do-jabuti/ http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/2012/10/23/o-bichinho-carrega-nas-costas-mais-do-que-deveria-diz-curador-do-jabuti/#comments Tue, 23 Oct 2012 20:17:16 +0000 http://abibliotecaderaquel.blogfolha.uol.com.br/?p=3274 Continue lendo →]]>

Cartum de João Chiodini sobre o jurado C, recebido via Twitter =)

Eu sei, eu sei, são muitos posts seguidos sobre o assunto. Mas fiquei devendo a resposta da organização do Prêmio Jabuti ao comunicado da Objetiva sobre as notas zero que o jurado C atribuiu ao romance “Infâmia”, de Ana Maria Machado. Segue a conversa que tive com José Luiz Goldfarb, curador do prêmio há décadas e um defensor da causa do livro no país.

Update no dia 24: ontem não podia postar aqui, mas o Paulo Werneck, editor da “Ilustríssima”, desvendou a identidade do jurado C: é o crítico e editor paulista Rodrigo Gurgel, que escreve no “Rascunho”. Está na Folha de hoje, acompanhado por um textinho meu revelando o curioso modus operandi de Gurgel, que na segunda fase deu notas zero para livros que três semanas antes, na primeira fase, tinham recebido notas altas dele mesmo.

E mais update no dia 24, porque não aguento mais fazer post sobre Jabuti: questionaram nas redes sociais o fato de o Rodrigo Gurgel se apresentar como editor associado” da LeYa, sendo que as regras impedem que os jurados tenham vínculo com editoras. A LeYa informa que Gurgel fez leituras críticas para a editora entre 2010 e 2011, sem cargo fixo. De todo modo, em 2010 e 2011 Gurgel já era jurado do Jabuti. E será possível arrumar quase cem jurados sem ligação com editoras num prêmio voltado ao mercado editorial?

***

É o terceiro ano seguido com o Jabuti envolvido em polêmicas. Como avalia isso?
Pois é. No ano retrasado, tivemos o Chico Buarque, segundo lugar na categoria romance, eleito o livro do ano. O regulamento permitia, já tinha acontecido outras vezes, mas a polêmica nos fez rever o regulamento. No ano passado houve uma quantidade desagradável de finalistas que, pelas regras, não poderiam ser finalistas. Do ponto de vista de um prêmio é melhor desclassificar do que manter o erro, mas foi ruim terem sido vários casos.

Eu estava extremamente contente neste ano. Instituímos a comissão de curadores, que foi boa para eliminar obras que não deveriam estar participando. Quando saiu o resultado da primeira fase, como não eram mais centenas de livros concorrendo por categoria, fiquei tranquilo. A apuração da segunda etapa estava quase terminando quando pintou o jurado C. Mantive a frieza e a firmeza de que voto é voto e ninguém pode questionar se estiver dentro das regras. A reação de jornalistas e editores, na hora, foi de estranheza. Houve um zunzunzum de que seria anulado. Fiquei chateado com textos dizendo que a votação tinha de ir para o Supremo, coisas do gênero. A força do Jabuti é a contagem dos votos ser toda aberta.

Acha que problemas do gênero prejudicam a relevância do Jabuti?
Como curador, não gosto de ver isso acontecer. É claro que problemas no Jabuti extrapolam minha carga horária de Jabuti, que é só uma das minhas atribuições. Mas as pessoas entram numa maré de que tudo é melado no país e, na verdade, nos três casos de polêmica, nada foi ilegal, nada foi maracutaia. Nenhuma das polêmicas pôs em questão a lisura do prêmio. Aliás, a polêmica do jurado C só veio à tona porque os votos são abertos.

Por que mudaram a regra que limitava a nota mínima 8 na avaliação dos jurados?
Por muito tempo, a nota foi de 0 a 10. Não lembro como mudou, nunca tinha acontecido algo assim, mas em algum momento ficou resolvido que seria de 8 a 10. Passei a receber de jurados o pedido de que isso fosse ampliado, que 8 a 10 era uma margem pequena para avaliação, e aconteceu de jurados darem notas abaixo de 8 e terem seus votos anulados.

Num momento, talvez, de ingenuidade minha, não lembrando que alguém poderia usar isso para votar de forma muito pesada… Não houve uma reflexão muito detalhada, a gente achou, na confiança, que com uma margem maior dava para votar com mais critério. O que aconteceu foi que a gente abriu a possibilidade para que acontecesse o que de fato aconteceu.

Agora, se houve algum problema de ordem ética no Jabuti 2012, se você vier me perguntar, eu respondo: não, nenhum problema. Não fiquei satisfeito com a atitude, mas o jurado C tinha direito. Quando a gente divulgar quem é, vocês vão ver que é uma pessoa excelente. Vão descobrir que é alguém conhecido, que já publicou, que escreve algumas coisas muito importantes.

Você disse uma vez que evita repetir jurados, mas afirmou que o jurado C já esteve no júri outras vezes. Como funciona isso?
Depende da disponibilidade. Muita gente, por estar envolvida na área, comprometida com alguma editora, não pode estar no júri. Muita gente se oferece, manda currículo, informa que gostariam de ser jurado. O principal ganho não é a remuneração, que é pequena. O que é atrativo é a possibilidade de colocar no currículo. A gente evita repetir jurados, mas não é a regra. Se um jurado aceita e depois recebe um convite para ir ao exterior, justamente por serem pessoas importantes na área, a gente é obrigado a substituir. Então a gente recorre a quem já conhece a dinâmica, alguém que cumpriu os prazos quando participou outra vez, e convida. Essa é uma operação que exige rapidez nas decisões.

Por que os jurados não podem ser revelados ainda, se a votação final não depende só deles, mas principalmente dos votos dos membros da Câmara Brasileira do Livro?
Ate o dia 28, estamos num processo de eleição dos livros do ano. Agora é aquele grande colegio eleitoral, em que recebem a célula tanto os jurados quanto os membros da CBL. Se um jurado for entrevistado, pode influenciar o resultado desse processo.

Por que o mercado vota? Isso não reduz o caráter literário do prêmio?
Quando assumi a curadoria do Jabuti, 20 anos atrás, não havia prêmio em dinheiro. Naquela época, li uma entrevista com o Paulo César de Souza, que tinha ganhado um Jabuti em tradução, em que ele dizia que “um chequinho não iria mal”. Quando me convidaram, falei que aceitava ser curador na condição de que se começasse a remunerar os jurados e os vencedores. A CBL, mas fez uma contrapartida: os jurados escolhem os vencedores, e o mercado faz a votação final. O Jabuti nem cobrava pelas inscrições, ou cobrava um valor simbólico, mas hoje é o mercado que banca quase todo o Jabuti. A questão é que hoje o mercado participa da decisão, mas, antes disso, o júri garante a qualidade das obras que serão votadas na etapa final.

No comunicado de ontem, a Objetiva fez duas perguntas. Uma dela foi se, ao votar na segunda fase, o jurado C sabia os votos dos demais jurados na etapa anterior.
Uma coisa importante é que os jurados não só não são conhecidos pelo público como não são conhecidos entre si. Em outros prêmios, os jurados se juntam, influenciam os votos uns dos outros. Se o jurado C acompanhou a votação da primeira fase, que é aberta, ele poderia saber as notas dos finalistas. Mas nem todos os livros que foram para a segunda fase foram votados pelos três jurados na primeira etapa, então ele não teria como saber a nota que cada jurado daria a cada livro. Ele foi esperto. Provavelmente elaborou vários cenários para votar. O voto dele foi certeiro. Ele definiu a posição tanto daqueles que ele quis diminuir quanto dos que quis jogar para cima. Agora, é duro acreditar que Ana Maria Machado o desgostou tanto a ponto de merecer um zero, isso me deixa chateado como curador.

A segunda pergunta é se ele também deu notas baixas a ela na primeira fase.
Os jurados não dão nota para todos os 142 livros. Cada um deles escolhe dez que acha que valem a pena e atribui notas apenas a eles. Os dez mais bem pontuados vão para a segunda fase. O jurado C não votou na Ana Maria Machado na primeira fase. O que acontece muitas vezes, e que acho legal, é que um jurado na primeira fase pode não ter prestado atenção num livro, mas os outros dois votaram nele e ele foi para os finalistas. Uma vez tendo o livro entre os finalistas, o jurado que não votou nele antes poderá avaliá-lo com outros olhos.

Você conversou com o jurado C para tentar entender esses votos?
Não falei e não quero falar. Se eu falar com um jurado antes do resultado final, pode parecer pressão. Vamos tirar a curiosidade no dia 28.

Qual você acha que foi a intenção dele?
Acho que foi o que você escreveu no blog, ele quis privilegiar o desconhecido.  Os números levam a crer que ele bombou os consagrados e avaliou muito positivamente as revelações. Mas é preciso tomar cuidado com uma coisa: alguém pode ficar com a impressão de que ele escolheu uns livros chinfrins e usou seu poder para beneficiá-los, mas não foi isso. Os livros que receberam notas altas dele também foram muito bem avaliados pelos outros dois jurados. O “Nihonjin”, se não fossem as notas baixas para Ana Maria Machado, Wilson Bueno e Domingos Pellegrini, ficaria em quarto lugar. Isso numa avaliação que partiu de 142 livros.

Cada jurado na categoria romance recebeu mais de cem livros para avaliar num intervalo de poucos meses. Acha mesmo que eles conseguem ler tudo? [Leia depoimento de um jurado, publicado em 2009, link que me chegou via Silvio Alexandre]
Os jurados têm absoluta liberdade, recebem os livros e têm em torno de dois meses para escolher os dez aos quais atribuirão notas. Não posso dizer se todos leem todos, mas espero que tenham contato com todas as obras. Como você escreveu, é claro que o fato de um escritor ter uma história pode influenciar. Em vários prêmios há uma coincidência de resultados, os júris tendem a votar em quem já conhecem. É um problema universal, o ser humano disponível para ser júri de prêmios literários no planeta Terra tende a ser influenciado pelo nome das pessoas (risos). Nem que seja por dedicar mais tempo à leitura daqueles que conhece.

O que você achou do resultado do prêmio?
Olha, fico triste com a maneira como aconteceu, mas posso dizer que eu, Zé, pessoalmente, fico feliz de ver revelações ganhando prêmios. Para o autor consagrado, como você escreveu, será só mais um na casa ele. É importante olhar para o escritor que ainda não está sob os holofotes e que pode vir a ser influente na literatura brasileira.

Quando houve a polêmica do Chico, veio à tona o fato de o prêmio ter categorias demais. Daí, em vez de diminuí-lo, no ano seguinte vocês criaram mais categorias, elas passaram de 21 para 29. Você não acha que o Jabuti deveria ser mais enxuto?
Olha, acho que o bichinho carrega nas costas mais do que deveria. Minha vontade como curador é, na medida do possível, diminuir. Esse aumento ocorreu quando se decidiu que ia ganhar só o primeiro lugar, então resolvemos aproveitar para cobrir uma demanda de outras áreas que não eram premiadas. Porque há uma pressão das editoras que editam naquela área. Para 2013, é bem provável que a gente reavalie para ver quem está merecendo ser categoria ou não. Agora, é preciso levar em conta que é um prêmio do mercado, tem que contemplar capa, ilustração, fotografia, categorias que um prêmio puramente literário não tem que carregar nas costas.

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