Daniel Clowes e a gênese de "Wilson"
20/02/12 13:49Fui avisada de que teria 15 minutos, não mais do que isso, de entrevista com o cartunista Daniel Clowes, 50, o pai das adolescentes rebeldes de “Mundo Fantasma” (imagem acima, a HQ em que se baseou o filme “Mundo Cão”, com Scarlett Johansson). E então desconfiei de que ele fosse um desses autores sem nenhuma paciência para jornalistas.
Algo com o argentino Quino, que um dia me concedeu 20 minutos de trauma por telefone.
No fim, Clowes, um dos maiores nomes dos quadrinhos norte-americanos nas últimas décadas, é a gentileza em pessoa. Do tipo que se faz de surpreendido quando ouve uma pergunta que, numa estimativa otimista, já deve ter escutado 87 vezes antes e que ri das próprias respostas, no melhor estilo Zé Simão. Mas eram só 15 minutos, enfim.
A razão da entrevista foi o lançamento da graphic novel “Wilson” pelo selo Quadrinhos na Cia. Escrevi sobre o livro na “Ilustrada” de sexta: a história do sujeito mais irritante que alguém pode conhecer, reclamando de tudo e de todos ao longo de 80 páginas.
(Falando assim pode parecer que a HQ é uma bobagem, mas tento explicar um pouco melhor no texto que linkei acima. É bem genial, mesmo.)
Mas, ok, aos 15 minutos, então.
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Wilson é a primeira graphic novel que você fez para ser publicada primeiro na íntegra, sem que tenha sido serializada antes, mas ela lembra muito uma reunião de de tiras.
Sim, sim, é verdade.
Por que pensou nesse formato para sua primeira graphic novel?
Quando comecei a escrever, não tinha ideia de como seria, se seria um livro ou uma série de tiras. Deus sabe, eu não tinha ideia. Tentei não pensar muito antes no que seria o produto final antes que pudesse ver os primeiros resultados. Mas comecei a gostar de rabiscar essas tiras. A certa altura me dei conta de que havia uma espécie de história nelas todas se você as colocasse juntas, e foi quando decidi juntar num livro. Mas começou de forma muito orgânica.
Essa gênese também tem a ver com a ideia de desenhar Wilson com vários traços diferentes ao longo do livro?
Bem no começo eu estava só fazendo uns riscos a lápis. Àquela altura eu não sabia como era o personagem, eram só rabiscos mesmo. As tiras eram mais sobre o que esse cara ranzinza estava dizendo do que sobre a história dele. Então finalmente comecei a desenhar. A princípio pensei que seria num traço engraçado, bem de cartum, mesmo, do tipo que você vê nos jornais americanos aos domingos, com situações típicas dos subúrbios. Depois achei que seria melhor se o traço fosse mais realista e mostrasse bem como ele era. Depois de ver todos os modelos, concluí que teria mais efeito se mantivesse os vários estilos, porque isso meio que replicava o sentimento que você tem quando pensa em si mesmo em determinado dia. Num dia, você se vê sob uma luz negativa; no outro, de outra maneira, numa visão que segue o seu humor. Quis capturar algo sobre a maneira como nos vemos no mundo.
O livro dá a impressão de não ter um roteiro muito pré-definido, como se você tivesse lampejos e criasse as situações conforme desenhava. Por exemplo, quando, depois de várias páginas sobre uma singela viagem de Wilson com a ex-mulher e a filha recém-descoberta, a ex-mulher diz que “essa coisa de sequestro” não a deixa tranquila.
Fico feliz que você diga isso, porque era como queria que parecesse, como se a narrativa estivesse acontecendo sem nenhum controle. Mas perto do começo eu já tinha visualizado a história toda e pensado bem de que maneira todos os detalhes funcionariam juntos. Decidi fazer todo o livro no estilo mais o mais simples e básico possível. Não queria que nenhuma página não funcionasse isoladamente como tira, que absolutamente tudo fosse engraçado e emocionalmente forte, mas que ao mesmo tempo cada tira tivesse uma informação importante para levar a história adiante. A graça é fazer com que o leitor descubra que existe um roteiro ordenado naquilo que por muito tempo parecia não ter.
Os personagens de seus livros anteriores, como “Mundo Fantasma”, são adolescentes, uma fase da vida em que as pessoas ainda são capazes de mundar, e Wilson… é muito triste, porque ele já está numa fase da vida em que não tem mais solução. Ele é irritante no começo, mas ao longo da história vai dando uma pena enorme do que ele representa.
Sim, por isso dei a ele ao final uma espécie de segunda chance, essa descoberta que ninguém sabe o que é, mas que é uma forma de contentamento. Gosto de personagens que são pessoas difíceis, que não se encaixam direito no mundo. Gente que tem dificuldade em lidar com outros é sempre melhor para levar uma história adiante. No começo, ele era irritante para mim como para todo mundo e isso era só engraçado, mas depois de trabalhar com um personagem desses por tanto tempo você encontra neles detalhes que vêm de você, e isso me causou uma enorme simpatia por ele, da melhor maneira possível.
A passagem irregular do tempo também é forte na HQ, são vários quadros que acontecem no mesmo dia seguidos de outros que pulam anos da vida de Wilson. Como foi trabalhar isso?
Tentei reproduzir a maneira como nos lembramos da nossa vida. Você olha para trás e pode se lembrar de dez coisas que aconteceram num único dia, e depois não consegue se lembrar de mais nada do que fez nos quatro anos seguintes. Você se lembra de pontos altos num sentido emocional. Seja lá por que motivo, algumas coisas grudam na sua cabeça. O que você tem que fazer nesse tipo de história é capturar os momentos que grudam na sua cabeça por razões que não saberia articular por escrito, mas que têm impacto.
Você está trabalhando no roteiro do filme baseado no livro, certo?
Sim, acabei de terminar o primeiro rascunho. Porque, sabe, filmes exigem várias etapas de rascunhos, nunca é como você pensa no primeiro momento. Mas vai ser transformado em filme, espero que logo.
Isso é algo que você já fez antes, em “Mundo Cão”, que é muito parecido esteticamente com a HQ que o originou. No caso de “Wilson”, você pensa em alguma solução estética para levar para a tela esses estilos tão diferentes que percorrem a história?
Falamos sobre isso [Clowes e o diretor Alexander Payne, que trabalha com ele no roteiro), mas concluímos que no filme esse formato causaria mais distração do que qualquer outra coisa. De certa maneira, numa HQ, você se acostuma com os vários traços e, ao final, nem nota mais os diferentes estilos, mas achamos que num filme isso tiraria a atenção. Estamos tentando resolver de uma maneira diferente, fazer como um filme que funcione em termos cinematográficos.
E já sabe que ator será o Wilson?
Não pensei ainda, é uma dessas coisas que você precisa esperar para pensar quando estiver com o roteiro final em mãos, porque vai saber o que acontece no meio do caminho…
Mas há algum ator que você olhe e pense que daria um ótimo Wilson?
Ninguém aparece para mim como uma escolha certeira. Muita gente pode ser boa. Certamente não vou querer dizer o nome de alguém, porque depois o ator lê no jornal que o papel é dele, isso não cabe a mim.
É notória sua rejeição pelo termo graphic novel, e agora você lançou seu primeiro livro nesse formato. Desistiu de reclamar?
Eu desisti. Por anos, não queria que usassem o termo porque acho que seja pouco fiel ao que fazemos. Muito do que as pessoas chamam de graphic novel não é romance, como “Maus”, de Art Spiegelman, que é puramente factual. “Maus” não é uma ficção, e romance é ficção. Tentei o quanto pude fazer com que as pessoas percebessem que é uma descrição ruim, mas tive que me adaptar. Não tinha mais o que fazer.
Mas foi depois que o termo se estabeleceu que cartunistas começaram a ter uma espécie de “status literário”. Como aconteceu com você, que já teve seu trabalho comparado com Philip Roth, entre outros, pela forma como reproduz a sociedade americana.
Acho que essas comparações não são algo que tenha um pé muito forte na realidade. Certamente há muito mais atenção dedicada a cartunistas hoje do que já houve. Mas não é como se estivéssemos sendo cotados para o Prêmio Nobel. Não acho que tenhamos mudado o suficiente a vida das pessoas.
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Achei “Wilson” bom, mas com certeza não o melhor de Clowes…
Agora, o que mais me intriga é a adaptação pro cinema – digo isso porque a HQ depende muito da forma, a forma acrescenta muito ao conteúdo e traz toda uma nova camada à narrativa. Não sei como vão conseguir transpor isso pra telona!
Não é? Foi bem essa a minha dúvida…
Muito legal a entrevista.
Sobre a adaptação para o cinema, na expectativa para encontrar a solução do Daniel Clowes para conferir unidade às tiras do livro.
Obs.: Não sabia sobre a origem do filme “Mundo Cão” e, agora, o longa-metragem faz mais sentido para mim.
Obrigada, Francisco. Pois é, quando puder, leia a HQ. No Twitter o/a @espinafrando me disse que acha o filme melhor, mas eu prefiro a HQ. Embora o Buscemi (não sei como escreve, não vou checar, cof) esteja fora de série
Jeff Bridges é imbatível! Puxa, não sabia do mal-humor do Quino. Ele devia ter aprendido algo com a Mafalda.
Olha, eu também não sabia, aprendi na pele. rs. E depois li uns comentários sobre isso em entrevistas no Google. Sei lá, talvez seja só que ele não tem mais o que falar sobre o que vem desenhando há 40 anos, talvez nem seja por mal…
Adorei o Wilson. Philp Seymour-Hoffman e Paul Giamatti dariam bons Wilsons no cinema, apesar de óbvios.
Li que o Quino, em uma das entrevistas que deu a um jornal argentino, muito tímido, perguntou se poderia responder a determinada questão desenhando em vez de falando. E assim fez.
Olha, ele é mais mal-humorado do que tímido, achei. Até entendo: ele passa a mesma mensagem nos desenhos há 30, 40 anos, sei lá. Então há 30, 40 anos as pessoas perguntam as mesmas coisas a ele. Esses dois são bons! Pensei também no Jeff Bridges!