Juan Gelman e o poeta português
15/04/12 18:15- Prestes a completar 82 anos, agora no dia 3, o argentino Juan Gelman (acima, em foto de Bruno de Araujo) encarou 11 horas de viagem desde o México, onde vive há 23 anos, pouco antes de sentar ao lado de Eric Nepomuceno na 1ª Bienal Brasil do Livro e da Leitura, em Brasília, ontem.
Foi uma mesa de fala informal, intercalada por leituras de poemas e perguntas feitas diretamente pelo público, expediente que organizadores de eventos em geral evitam, pela margem que dá ao surgimento dos loucos de palestra. (Eles estavam lá, é claro. Loucos de palestra são como vendedores de biscoito Globo quando começa congestionamento na estrada para Petrópolis; não importa o tema, eles vão brotar nos primeiros segundos se um microfone for aberto ao público.)
Gelman está prestes a descobrir se pertencem à sua nora, desaparecida da ditadura na Argentina, os restos mortais encontrados num batalhão no Uruguai. Os resultado do exame de DNA deve sair por estes dias. O corpo do filho ele localizou e enterrou em 1990, dez anos antes de encontrar viva, aos 23 anos, a neta –o bebê que a nora esperava quando desapareceu.
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A história de vida dramática somada ao fato de ele ser um dos grandes nomes da poesia latino-americana não foram suficientes para encher nem metade da tenda em que Gelman falava, mas ele mesmo reconheceu a existência de barreiras para interessados no tema.
“Devo dizer que se lê pouco da poesia brasileira na Argentina. Não se pode dizer que seja uma barreira da língua, porque lá se traduzem poetas ingleses, franceses. Mas creio que festivais como esse vêm ajudando a romper esse desconhecimento mútuo.”
A editora Record tinha em seu estande na bienal apenas 20 exemplares de “Amor que Serena, Termina?”, edição bilíngue de poemas de Gelman que Eric Nepomuceno traduziu em 2001 e da qual foram lidos versos durante a mesa. Até onde vi não foram vendidos todos para a seção de autógrafos, mas houve quem comprasse livros dele num estande com títulos em espanhol.
Sobre a tradução, Nepomuceno contou: “Nunca tinha traduzido poesia, porque achava que esse era o tipo de coisa que tinha de ser feita por outro poeta, mas resolvi tentar. E, ao terminar, senti que faltava alguma coisa. Então mandei para um amigo meu, poeta, músico, revisar. Era o Chico Buarque. Ele aceitou revisar só porque eram poemas de Gelman.”
Fica aí então um deles, lido na mesa. Lindo, lindo, sobre Fernando Pessoa (o verso “uma vez esqueci um olho na metade de uma mulher” faz mal de tão bonito que é). Fique à vontade para fazer uma boa revisão e me contar se houver erros de digitação, porque escrever do iPad é uó.
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eu também escrevo contos
havia uma vez um poeta português/
tinha quatro poetas dentro dele e vivia muito preocupado/
trabalhava na administração pública e onde é que já
se viu um funcionário público de portugal ganhando o suficiente para alimentar quatro bocas/
toda noite fazia a chamada de seus poetas incluindo-se a si mesmo/
um esticava a mão pela janela e os astros caíam-lhe ali/
outro escrevia cartas ao sul/
o que estão fazendo do sul?/ dizia/
de meu uruguai?/ dizia/ o outro
converteu-se num barco que amou os marinheiros/
isto é belo porque nem todos os barcos agem assim/
há barcos que preferem olhar pela escotilha/
há barcos que afundam/
Deus caminha aflito por esse fenômeno/
é que nem todos os barcos se parecem aos poetas do português/
saíam do mar e secavam seus ossinhos ao sol/
cantando a canção de teus peitos/ amada/
cantavam que teus peitos chegaram certa tarde com uma escolta de horizontes/
isso cantavam os poetas do português para dizer que te amo/
antes de separar-se/ estender a mão ao céu/ escrever cartas ao uruguai
que chegarão amanhã/
amanhã chegarão as cartas do português e varrerão a tristeza/
amanhã vai chegar o barco do português ao porto de montevidéu/
sempre soube que entrava nesse porto e se fazia mais belo/
como os quatro poetas do português/
quando se preocupavam todos juntos pelo homem da tabacaria de frente/
o animal de sonhos do homem da tabacaria de frente/
galopando como dom josé gervásio artigas pela fome mundial/
o português tinha quatro poetas olhando para o sul/ para o norte/ para o muro/ para o céu/
dava de comer a todos com o salário de sua alma/
ele ganhava o salário na administração do país público/
e também olhando o mar que vai de lisboa ao uruguai/
eu sempre estou esquecendo coisas/
uma vez esqueci um olho na metade de uma mulher/
outra vez esqueci uma mulher na metade do português/
esqueci o nome do poeta português/
do que não me esqueço é de seu barco navegando rumo ao sul
de sua mãozinha cheia de astros/
golpeando contra a fúria do mundo/ com
o homem da frente na mão
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E eu não conhecia, mas o Átila Marques Ferreira, aqui nos comentários, citou a versão musicada do Gotan Project para “confianzas”, traduzido no mesmo livro do poema acima.
Raquel, que lindo. Não conhecia o Gelman, mas já me apaixonei. “De lo que no me olvido es de su barco navegando hacia el sur
de su manita llena de astros
golpeando contra la furia del mundo
con el hombre de enfrente en la mano.” Como é possível tanta dor e tanto amor ao mesmo tempo!!!! Um abraço!
<3
Ola. Sou estudante de jornalismo da PUCRS, estamos fazendo um trabalho sobre direitos autorais.
A senhora poderia responder algumas questões sobre os direitos autorais na literatura?
Grato, Gustavo Becker.
1- Qual a sua opinião sobre a pirataria dos livros?
2- O pagamento do direito autoral serve mais para o autor ou para a editora?
3- Os sites de compartilhamento de documentos como slideshare.net, wattpad.com e scribd.com são um benefício ou malefício para a literatura na era digital?
4- Qual a sua opinião sobre os e-books? E sobre os leitores digitais como kindle e ipad?
5- é a favor da distribuição de e-books e leitores digitais em escolas?
Oi, Gustavo, vi seu email, me dá só um tempinho que respondo! Só não me chama de senhora que não fiz nem 34 ainda!
beijo
Gelman fez da biografia de Pessoa uma maravilha inimaginável. Como é possível alguém inspirado assim? Acho que terás que transferir a pergunta p’ro Homem porque só ele tem a explicação. Meus respeitos.
Quase faz mal pra gente de tão bonito que é…
Raquel, bem vinda a Brasília. Que bom que fizeram a Bienal antes de começar o período de seca. Seria péssimo aquela estrutura toda com as tempestades de poeira que assolam o DF depois de maio. rs
Olha, você é de Brasília? Meu irmão e minha sobrinha moram aí (já voltei pra SP)
Favor publicar também o original em espanhol (“traduttori,traditori”)
Xi. Daí o post fica muito grande, Maurício, e isso é ruim para quem lê nos feeds de notícia! Mas o livro é bilíngue, como falei, você pode procurar =P. E posso dizer que li os dois e achei a tradução bem boa. O Nepomuceno é um dos melhores tradutores de língua espanhola e ainda teve o luxo de uma revisão do Chico, que conhece a obra do Gelman…
Olá Raquel, como estás ?
Adquiri uma cópia de “Amor que Serena, termina?” através de uma famoso site de compras e por um preço que considerei interessantíssimo !
Recomendo aos interessados no trabalho do Gelman que procurem pelo livro internê a fora porque ler seus poemas é uma experiência única. Versos rápidos, leves e de uma profundidade categórica.
Destaco seu poema “confianzas”, uma lamentação sobre o sonho da revolução latinoamericana, dentre muitas outras interpretações. O mais curioso é tomei conhecimento do poema através de uma versão musicada, feita pelo grupo “Gotan Project” que, por sinal, realizou um excelente trabalho.
Abraços.
Olha, que curioso, não sabia dessa do Gotan. E já gostei muito do grupo! Vou procurar saber qual é. “Confianzas”, o poema, é mesmo lindo