Pílulas joyceanas para o Bloomsday
16/06/12 13:40“–Ele sabia o que era o dinheiro, o senhor Deasy disse. Ganhou dinheiro. Poeta, sim, mas inglês também. O senhor sabe qual é o orgulho dos ingleses? O senhor sabe qual a palavra mais orgulhosa que jamais se ouvirá da boca de um inglês?
O dono do mar. Seus olhos marefrios por sobre a baía vazia: parece que a história vai levar a culpa: por sobre mim e minhas palavras, indetestante.
— Que em seu império, Stephen disse, o sol nunca se põe.
— Bah! o senhor Deasy gritou. Isso não é inglês. Foi um celta francês que disse isso. Batia o cofrinho contra a unha do polegar.
–Eu vou lhe dizer, ele disse solene. ‘Não devo nada a ninguém’.
Bom menino, bom menino.
— ‘Não devo nada a ninguém. Nunca pedi um xelim emprestado na vida’. O senhor consegue sentir isso? ‘Não devo um tostão’. Consegue?
Mulligan, nove libras, três pares de meias, um par de berguezins, gravatas. Curran, dez guinéus. McCann, um guinéu. Fred Ryan, dois xelins. Temple, dois almoços. Russell, um guinéu, Cousins, dez xelins, Bob Reynolds, meio guinéu, Kohler, três guinéus, senhora McKernan, cinco semanas de estadia. O calombo que eu tenho é inútil.
— Por ora, não, Stephen respondeu.
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O Kindle informa que só cumpri 21% da meta de ler todo o “Ulysses” até hoje, Bloomsday, o dia em que se passa toda a ação do livro. Mas o delicioso trecho acima, na tradução de Caetano Galindo, ajuda a ilustrar como meu fracasso até o momento decorre apenas do fato de os meus dias não serem intermináveis como o de Leopold Bloom.
Deve ser mais fácil para quem tem horas ociosas avançar no livro em pouco tempo, difícil é achar quem tenha muitas horas ociosas e interesse nisso ao mesmo tempo. Em um sentido “Ulysses” é mesmo parecido com “Grande Sertão: Veredas” –vencido o estranhamento com o estilo nas primeiras páginas, a coisa funciona que é uma maravilha.
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Via Mental Floss, fico sabendo que Marcel Proust (1871-1922) morreu sem ler James Joyce (1882-1941), que por sua vez aos 40 anos ainda não tinha lido o francês.
Eles se encontraram no ano da publicação de “Ulysses”, por acaso também o ano da morte de Proust, num jantar, e a perspectiva de acompanhar uma conversa daqueles dois gênios da literatura deixou os outros convidados em polvorosa. Para decepção dos curiosos, antes de admitirem que não conheciam o trabalho um do outro, eles passaram a noite reclamando das infelicidades da existência –Joyce tinha dores de cabeça e problemas de vista crônicos; Proust era vítima de recorrentes dores de barriga.
Ao final, dividiram um táxi, e o autor de “Em Busca do Tempo Perdido” desceu antes sem pagar sua parte.
P.S. da pílula: nos comentários, o leitor César Jacques disse que a descrição dessa noite aparece meio diferente no livro “Uma Noite no Majestic”, do Richard Davenport-Hines, que a Record lançou faz um tempo. Tem uma descrição da descrição aqui.
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Uma turma de estudantes de literatura em Boston criou e colocou no ar hoje, na loja da Apple, um aplicativo para um passeio virtual por Dublin pelos olhos dos personagens de James Joyce. Chama-se “Joyce Way” e custa U$ 3,99, que gastei para ver qual era.
Lembra um pouco os audioguias de museus, com direito a uma bússola para o usuário saber em que direção ficam os endereços citados, o que significa que é legal mesmo para quem está em Dublin, e não para quem, como eu, está no sofá com o laptop ao colo. Eles o definem como uma espécie de janela para os gostos, cheiros (cheiros?) e sons da Dublin de 1904, cenário do romance, tendo como ponto alto, é claro, um roteiro com 15 os pubs citados na história, que continuam praticamente como eram um século atrás.
Como existe maluco para tudo neste mundo, inclui até um mapa para quem se interessar pelo desafio proposto em “Ulysses” de atravessar Dublin sem esbarrar num pub. Taí, abaixo. Não dá para enxergar o nome das ruas, mas, como é um passeio que não se recomenda a ninguém, isso não chega a ser um problema.
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“A história, Stephen disse, é um pesadelo do qual estou tentando acordar.”
Para quem se interessou pelo app do iOS o nome correto é “Joyceways” e não “Joyce Way” (infelizmente o iTunes não é como Google, que acharia de qualquer jeito, ele é mais burro.)
Ops! Eu baixei e digitei errado mesmo assim. =(
Brigada pela correção
A história do encontro dos dois me lembra de imediato a dupla Hemingway-Fitzgerald indo ao banheiro para que o primeiro medisse o documento do segundo. Por via das dúvidas, avisei a todos os meus colegas que nunca farei algo parecido.
E sobre Ulysses, concordo com tua fala e sempre me pego pensando o seguinte, um ano que estou fingindo lê-lo (de um bloomsday a outro): não é um livro difícil, não é uma batalha, mas é um livro que exige tua fidelidade e, se já difícil ser assim com o amor, imagine com o papel.
um abraço
Resumiu lindamente, Davi: um livro que exige a tua fidelidade
Minha adorável jornalista. Sobre excerto deste seu artigo que se inicia com “Via Mental Floss”, recomendo-lhe a leitura do livro Uma Noite no Majestic, de Richard Davenport-Hines (Record, 2007) onde os fatos aí descritos aparecem com um relato bem aprofundado já no seu primeiro capítulo. E não aparecem bem como descreveste.
Joyce devia ser um tremendo de um mala. Sylvia Beach que o diga. E Samuel Beckett também.
Abração.
Ha! Eu traduzi o que disse a jornalista do Mental Floss e dei o crédito. Agora que vc comentou achei essa descrição que saiu no Estadão, de fato diferente. E a jornalista do Mental Floss não diz de onde tirou a dela… http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,o-jantar-em-que-os-genios-nao-se-bicaram,318665,0.htm
o caso do não li seu livro de ambos (Joyce/Proust) ocupa um parágrafo de uma quase toda página (44) e fica impossível fazer uma sinopse aqui. Tem que ser lido na íntegra. Quanto ao caso do taxi, este fora alugado pelo casal Schiff que ofereeu carona a Proust (até desnecessária pois ele morava ao lado do Majestic) e Joyce entrou também no carro peruando carona. (este relato tem início no parágrafo que começa na p. 47 e vai até seu final na p. 48 além se sua metade. O ideal é ler o livro por inteiro. Como eu digo, lê-se de enfiada. É como o livro de Sylvia Beach – Shakespeare and Company, uma livraria na Paris do entre-guerras (Casa da Palavra) – que também pode-se ler de cabo a rabo em pouco tempo. Meio prolíxo neste exiguo espaço, não?
Bem, ao menos o centro da informação do Mental Floss, de que um não leu o livro do outro, bate com essa, rs. Não sei o quão mala era o Joyce, mas o neto certamente herdou tudo o que ele tinha dessa característica.
Raquel, cá fora o dia é mesmo menor. Bom saber desse fato sobre Proust e Joyce. Sobre o primeiro, estou doido para ler o relato Senhor Proust, de Céleste Albare, que dizem ser muito bom. Deve ter relevancia para episodios curiosos sobre a vida do grande escritor. Não sei se conhece a obra. É desse tipo de obra donde se tira curiosidades do tipo. Joyce ainda me desafia. Meu Ulisses está cá aguardando. Um dia a gente estica o dia, e na esticadinha acaba de ler. Ah, estou lendo as duas, viu? Se me preocupar com quem posta antes ou depois…
Nunca li, não, Di Sanctis, vou pesquisar. Ulysses ainda estou enfrentando. Tem umas partes meio chatas, embora nunca tão chatas quanto as mais chatas de Catatau, outras de morrer de amar as ironias. Mas capoco vou ter que estacionar de novo pra ler outro a trabalho… De resto, obrigada pela leitura e pela paciência 😉
Ah, não é porque você ainda não leu o livro que tem de ficar diminuindo o esforço de quem leu. Eu não tenho muitas horas de folga, mas já li, e outros também o leram. Nem tem que ficar dando uma de bravinha porque o blogue da outra moça da Folha é mais esperto em se atualizar e já noticiou o bloomsday (que todo mundo deveria estar lhe pentelhando pra postar sobre), embora ela seja menos bonitinha. Beijocas 😉
Não tô diminuindo o esforço, Pedro, estou justamente dizendo que é difícil achar quem tenha interesse e horas ociosas ao mesmo tempo! Sobre elas, digo “para avançar em pouco tempo”. Digo, imagino que você tenha reservado suas poucas horas livres para o livro e por isso acabou demorando mais do que gostaria, não? Considerando que é leitura boa, daria pra ficar lendo horas seguidas a fio. Se pareceu diminuir seu esforço, não foi a intenção. Sobre postar antes ou depois, não sei onde foi que meu post pareceu bravinho quanto a quase todos os blogs literários nacionais e gringos terem postado antes (rs), mas não estou apostando corrida com ninguém. Atualizo quando tenho tempo (sempre jogando a culpa nele) para fazer a coisa minimamente bem-feita. Para notícias rápidas, já tenho o Twitter =P. Não briga comigo =*