O inferno de Paradiso, entre duas editoras*
26/09/12 22:28“A mão de Baldovina afastou os tules da entrada do mosquiteiro, escarafunchou apertando suavemente como se fosse uma esponja e não uma criança de cinco anos; abriu a camisa do pijama e contemplou o peito inteiro do menino cheio de víbices, de sulcos de um colorido violento, e o peito que se inflava e se encolhia como se tivesse de fazer um esforço enorme para alcançar um ritmo natural; abriu também a braguilha e viu as coxas, os pequenos testículos cheios de víbices que iam aumentando, e ao estender ainda mais as mãos sentiu suas pernas frias e trêmulas. Nesse nstante, meia-noite, apagaram-se as luzes das casas do acampamento militar e se acenderam as dos postos fixos, e as lanternas das rondas itinerantes transformaram-se num monstro errante que baixava rumo aos charcos, afugentando os escaravelhos.”
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Este acima é o primeiro parágrafo da nova tradução de “Paradiso”, de José Lezama Lima (1919-1976), à qual Josely Vianna Baptista dedicou alguns anos desde 2006. O volume, editado pela Estação Liberdade, tem mais de 600 páginas, incluindo dois textos introdutórios de Eloísa Lezama Lima, irmã do autor cubano, e estava previsto para o mês que vem.
Digo que estava previsto, e não que está, porque no caminho surgiu um imprevisto. Na semana passada, a editora Martins Fontes/Selo Martins procurou a Estação Liberdade e disse deter os direitos de publicação do título no Brasil –comprou-os, no fim do ano passado, da estatal cubana Agencia Literaria Latinoamericana (ALL). A Estação Liberdade respondeu que comprou os direitos em 2006 de Eloísa Lezama Lima. Fez-se um impasse.
Tratei do assunto no último Painel das Letras, mas outros detalhes merecem atenção –e inclusive aceito informações de quem por acaso entenda da lei de direitos autorais cubana.
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Pela lei brasileira, que considera nesses casos a legitimidade de herdeiros colaterais (irmãos, tios, sobrinhos), a irmã de Lezama Lima (e atualmente o filho dela, já que ela morreu em 2010) teria direito sobre a obra do autor. Não conhecendo a lei cubana no que diz respeito a direitos autorais, questionei Daniel García, diretor da ALL, que argumentou:
“[Lezama] morreu em Cuba em 1976. Antes, em 1972, havia morrido sua irmã Rosa, em Miami. Sua mulher, María Luisa Bautista, morreu depois, em 1981. Sua outra irmã, Eloísa Carmen, emigrou também a Miami, onde morreu em 2010 sem direitos hereditários legalizados.”
“Em 21 de novembro de 1983, declara-se oficialmente que Lezama Lima morreu sem testamento, e seus direitos de autor passam ao Estado cubano. Em 1998, toda a sua obra, impressa e manuscrita, é declarada patrimônio da nação cubana. Em 23 de setembro de 1997, a Agencia Literaria Latinoamericana é designada representante dos direitos de autor de José Lezama Lima no exterior em nome do Estado cubano.”
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Angel Bojadsen, diretor editorial da Estação Liberdade, argumenta que Eloísa sempre atuou como representante dos direitos de José Lezama Lima. “Como os herdeiros naturais vivem fora de Cuba, o Estado cubano parece declarar os direitos patrimoniais como seus”, especula. Se for mesmo a emigração a alegação cubana, há aí uma questão a se discutir.
Pelas leis dos EUA, lembra o editor, a irmã e o sobrinho seriam os herdeiros. Consultei dois advogados especialistas em direitos autorais, Silvia Gandelman, reconhecida no meio editorial, e Rodrigo Salinas, professor da USP, e ambos me disseram que o que vale é o direito do país de nacionalidade do autor. No caso, Cuba –cujas leis, como eu, eles não conhecem.
Bojadsen ressalta que assinou o contrato cinco anos antes da Martins. O fato de que a Estação Liberdade lançaria nova tradução era conhecido pelo menos desde o ano passado (publiquei nota a respeito na minha antiga coluna, no Estadão, em janeiro de 2011). Na edição espanhola, da Catedra, a mais difundida, o direito autoral constante é “Copyright Eloísa Lezama Lima 1968”.
Em Cuba, as obras de Lezama Lima ficaram por anos censuradas pelo mesmo governo que agora reclama seus direitos. Foram liberadas e reeditadas nos anos 80 e, após anos fora das prateleiras, “Paradiso” voltou a aparecer por lá em 2009. “O ponto positivo disso é que Cuba agora parece apreciar Lezama Lima”, ironiza Bojadsen.
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Dois anos atrás, conversei com alguns estudiosos de Lezama Lima, entre eles o cubano Amir Valle, escritor residente do Programa de Escritores no Exílio do P.E.N. Center, na Alemanha. Algumas das coisas que ele disse vêm a calhar neste momento.
“Lezama foi marginalizado por um governo que o acusou de não integrado, de autor de elite. A revolução não pôde esmagá-lo porque já era respeitado no mundo todo, mas o cercou de muitas maneiras.” Depois da morte do autor, o governo promoveu uma espécie de resgate, mas “reescrevendo a história triste de um homem que nunca quis se exilar e morreu no ostracismo”.
Era uma versão cheia de “buracos negros”, segundo Valle. “Durante os anos 80, nos quiseram enfiar Lezama por todo lado, reeditaram seus livros, permitiram a publicação de ensaios sobre sua obra –desde que não se fizesse referência à censura que havia sofrido.”
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No Brasil, ele foi editado a partir dos 80, com a liberação em Cuba. “Paradiso” saiu em 1987, pela Brasiliense, traduzida por Josely Vianna Baptista. A tradução dela que a Estação Liberdade editou agora não é revisada; é uma nova tradução, iniciada do zero.
“A primeira tradução do ‘Paradiso’ foi fruto de um acaso. Ainda não era tradutora e li na Folha um anúncio da Brasiliense em busca de tradutores”, ela lembra. Candidatou-se, foi selecionada. Reconhecida pela complexidade linguística –mais importante que a trama em si, sobre o surgimento da vocação poética do menino José Cemí, alter ego do autor–, foi sua segunda tradução, “uma tradução de juventude, com suas ingenuidades”.
Ao começar a nova tradução, Josely já tinha traduzido mais de 50 títulos, incluindo outros Lezama, e ido duas vezes a Cuba. “‘Paradiso’ traz dificuldades tanto na microfísica do texto quanto na macrofísica de seus contextos. A linguagem é extremamente trabalhada, ainda que nem sempre deixe à mostra seu arcabouço formal, o que, aliás, só faz enriquecê-la. A cornucópia de campos semânticos por onde transita demanda pesquisa e leituras paralelas.”
Fico na torcida de que se chegue a uma solução em breve –uma coedição Martins/Estação Liberdade, quem sabe, ou a venda dos direitos ou da tradução a quem for de direito. O triste é saber que temos essa tradução pronta sem que se possa usufruir dela.
* O título “O inferno de ‘Paradiso'” foi roubado de um tuíte do poeta André Vallias sobre minha nota no último Painel das Letras
Esta briga nos lembra Lobato e o tempo que ficamos sem novas publicações deste incrível brasileiro.
contospoesiacia.blogspot.com.br/
Ah, na época da ida para a Globo? Nem lembro, ficou muito tempo fora de catálogo? Isso foi depois de minhas leituras de Lobato, felizmente =)
Sair da estante foi ruim, mas dizer que ele é Racista me incomoda muito, torço para que não se inicie uma caça as bruxas, imagine proibir ou adulterar obras consagradas deste brasileiro.
contospoesiacia.blogspot.com.br/
Ninguém falou em proibir a obra, foi apenas um parecer do MEC sobre a compra pelo governo. O livro não foi ameaçado de censura nem de adulteração, está disponível para quem quiser ler e assim continuará. E, sim, Monteiro Lobato, um dos maiores escritores do nosso país, era racista, infelizmente http://bravonline.abril.com.br/materia/monteiro-lobato-e-o-racismo#image=165-capa-racismo-1-g
Raquel, sempre que posso dou uma passada por aqui. Eu, que gosto de literatura, tenho começado a gostar de acompanhar o mercado editorial, apesar de estranhar uma coisa ou outra. Bom, deixando os elogios de lado, tenho que deixar registrado que na época do Monteiro Lobato o racismo tinha um embasamento de renome: a ciência. Por trás do racismo havia uma pseudociência racialista. Portanto, Lobato não foi o único intelectual que concordava com as teorias raciais; menciono o Sílvio Romero, crítico literário brasileiro de enorme importância, e o Spencer, pensador muito influente no Ocidente entre o fim do século XIX e começo do século XX. Acho importante ler a entrevista do professor João Luís Ceccantini: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/ldquo_censurar_monteiro_lobato_e_analfabetismo_historico_rdquo
Pois é, Henrique, tem razão, naquele tempo o pensamento do Lobato e de outros era inclusive socialmente aceito. Mas os tempos mudam, a sociedade muda, e é preciso saber lidar com isso. Se um professor não sabe explicar que isso já foi socialmente aceito, mas que hoje não é mais, se um professor não sabe explicar por que um dos maiores autores brasileiros chamava negro de macaco e por que mesmo assim os alunos não devem chamar os coleguinhas de macaco –e, convenhamos, a maior parte dos professores não está preparada para explicar isso–, é melhor pensar em alternativas. Sobre a entrevista, para mim analfabetismo mesmo é chamar de censura essa história envolvendo o MEC e Lobato. Não tem nada a ver com censura, isso é uma leitura superficial que infelizmente se disseminou antes que o assunto fosse pensado a sério.
A estação liberdade deveria publicar e pronto. A Martins aceitou comprar ‘os direitos’ de Cuba sabendo da transação da E.L. e do adiantado da tradução da Josely. Não agiram de tão boa fé assim. Publiquem, nós compramos e pronto.
Tendo ouvido ambas as partes, acho que, mesmo que a lei cubana esteja do lado da Martins (ainda não sei se a lei cubana não considera herdeiros colaterais), um bom advogado tem material para defender a Estação Liberdade. Por motivos de imparcialidade (cof), não me posiciono. Mas gostaria que saísse logo, por supuesto.
meu xará comentou basicamente o que eu comentaria (um pouco assustador isso, confesso, pois até pensei em “má fé” ao ler o post).
agora, fazer uma tradução do zero e ignorar a própria tradução de décadas passadas, meus parabéns à j.
É, não diria que houve má fé, mas, enfim, faltou algum diálogo.