"A vida de hoje não admite leituras demoradas." Olavo Bilac, em 1901
11/03/13 12:09Tenho muito a escrever a respeito da capa de sábado da “Ilustrada”, sobre três livros que fazem recortes da história das revistas no Brasil. Por ora, fico com este texto abaixo, mencionado no livro “A Revista no Brasil do Século 19” (Alameda), de Carlos Costa.
É um lamento sobre a falta de tempo do público para leituras demoradas e reflexões profundas… em 1901. O autor, o poeta Olavo Bilac, o publicou na “Gazeta de Notícias”, em 13 de janeiro daquele ano. Mas a questão central é o uso de imagens no jornalismo: o começo do fim da leitura. Bilac inclusive antecipa invenções como a TV e o skype (junto com a possibilidade de nascermos aos 18 anos, ok) nesse cenário catastrófico para as letras.
Há espaço para um mea culpa: erra-se muito no jornalismo de hoje. Digo, no jornalismo de 1901, também conhecido como “bons tempos aqueles”.
Carlos Costa foi quem me enviou a íntegra abaixo, presente em “Vossa Insolência: Crônicas de Olavo Bilac” (Companhia das Letras, 1996), organizado por Antonio Dimas. É grandinho para os padrões de um blog, considerada essa rotina vertiginosa e febril que temos hoje, mas, vá lá, prove a Bilac que Bilac estava apenas sendo pessimista.
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Fotojornalismo
Por Olavo Bilac
Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos pés… Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: ceci tuera cela.
O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana galopa, numa espumarada bravia, sem descanso. Quem não se apressar com ela será arrebatado, esmagado, exterminado. O século não tem tempo a perder. A eletricidade já suprimiu as distâncias: daqui a pouco quando um europeu espirrar, ouvirá incontinenti o “Deus te ajude” de um americano. E ainda a ciência humana há de achar o meio de simplificar e apressar a vida por forma tal que os homens já nascerão com dezoito anos, aptos e armados para todas as batalhas da existência.
Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às ilustrações copiosas, que [***] pelos olhos da gente com uma insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos alegres e casos tristes.
É provável que o jornal-modelo do século 20 seja um imenso animatógrafo, por cuja tela vasta passem reproduzidos, instantaneamente, todos os incidentes da vida cotidiana. Direis que as ilustrações, sem palavras que as expliquem, não poderão doutrinar as massas nem fazer uma propaganda eficaz desta ou daquela idéia política. Puro engano. Haverá ilustradores para a sátira, ilustradores para a piedade.
Quando o diretor do jornal quiser dizer que o povo morre de fome –confiará as suas idéias a um pintor de alma fúnebre, que mostrará na tela os cadáveres empilhados pelas ruas, sob uma revoada de corvos sinistros; quando quiser dizer que o político X é um cretino que não vê dois palmos adiante do nariz– apelará para o talento de um caricaturista, que, pintando a vítima com um respeitável par de imensas orelhas, claramente exprimirá o pensamento da folha. Demais, nada impede que seja anexado ao animatógrafo um gramofone de voz tonitruosa, encarregado de berrar ao céu e à terra o comentário, grave ou picante, das fotografias.
E convenhamos que, no dia em que nós, cronistas e noticiaristas, houvermos desaparecido da cena –nem por isso se subverterá a ordem social. As palavras são traidoras, e a fotografia é fiel. A pena nem sempre é ajudada pela inteligência; ao passo que a máquina fotográfica funciona sempre sob a égide da soberana Verdade, a coberto das inumeráveis ciladas da Mentira, do Equívoco, e da Miopia intelectual. Vereis que não hão de ser tão freqüentes as controvérsias…
Quando é assassinado um homem –este jornal vem dizer que lhe coseram o corpo a facadas, aquele que o asfixiaram, aquele outro que lhe estouraram o crânio a tiros de revólver. Ora, o público tem pressa: como há de perder tempo em procurar a verdade dentro deste acervo de contradições e de divergências?…
Há dias, foi preso um sujeito por espancar uma mulher. E os repórteres puseram em campo toda a sua fantasia, com tal gana que o pobre homem veio ontem a público elucidar o caso, conforme se vê nesta sua declaração, textualmente transcrita dos “a pedido” do Jornal do Comércio: “Os jornais deram desencontradas notícias acerca de um crime hediondo que uns vizinhos me imputaram. As versões são diferentes: o Jornal do Brasil anteontem afirmou que eu espanquei minha própria mãe; O País de ontem contou que eu bati em minha tia; O Dia relatou que eu ofendi a minha irmã…”
Concebe-se a maior atrapalhação? A verdade é que a mulher espancada não era mãe, nem tia, nem irmã, nem mesmo avó do desgraçado! E é assim que se escreve a História…
Imagine-se agora a série formidável de complicações que podem trazer esses exageros de fantasia, quando empregados em caso sério, de alta monta para a vida moral da nação.
Uma folha virá dizer amanhã que o sr. presidente da República foi a tal ou qual festa trajando um terno de casimira marrom; outra diria que Sua Excelência levava calças cor de cinza e de sobrecasaca preta; uma terceira afirmará que Sua Excelência vestia um dólmã branco… E a gente, diante de tantas opiniões diferentes, ficará com o juízo a arder, não podendo adquirir uma idéia assentada e perfeita sobre esse ponto, que tão grave influência pode exercer sobre a integridade da pátria e a solidez das instituições republicanas.
Outro caso interessante: o do amigo Galvez, que, depois de ter transposto a porta da eternidade, aparece agora espairecendo pela Puerta Del Sol em Madri. É ele? Não é dele? Quem sabe? Fotografem-no, e veremos…
Não insistamos sobre os benefícios da grande revolução que a fotogravura vem fazer no jornalismo. Frisemos apenas este ponto: o jornal-animatógrafo terá a utilidade de evitar que nossas opiniões fiquem, como atualmente ficam, fixadas e conservadas eternamente, para gáudio dos inimigos… Qual de vós, irmãos, não escreve todos os dias quatro ou cinco tolices que desejariam ver apagadas ou extintas? Mas, ai! de todos nós! Não há morte para as nossas tolices! Nas bibliotecas e nos escritórios dos jornais, elas ficam –as pérfidas!– catalogadas; e lá vem um dia em que um perverso qualquer, abrindo um daqueles abomináveis cartapácios, exuma as malditas e arroja-as à face apalermada de quem as escreveu… Daqui em diante, não haverá esse perigo: ninguém se arrependerá do que tiver escrito, pela razão única e simples de que nada mais se escreverá…
No jornalismo do Rio de Janeiro, já se iniciou a revolução, que vai ser a nossa morte e a opulência dos que sabem desenhar. Preparemo-nos para morrer, irmãos, sem lamentações ridículas, aceitando resignadamente a fatalidade das coisas, e consolando-nos uns aos outros com a cortesia de que, ao menos, não mais seremos obrigados a escrever barbaridades…
Saudemos a nova era da imprensa! A revolução tira-nos o pão da boca, mas deixa-nos aliviada a consciência.