Três anos numa favela indiana -e um dos melhores livros de 2012
22/03/13 19:16“Behind the Beautiful Forevers”, um dos livros mais elogiados do ano passado nos Estados Unidos, vencedor do National Book Award e assinado pela jornalista Katherine Boo –que já tinha no currículo um Pulitzer–, saiu por aqui nesta semana.
Não com o melhor dos títulos, é verdade. A Novo Conceito, editora de best-sellers românticos que garantiu esta pérola da não ficção para seu catálogo, escolheu batizá-lo com um infeliz “Em Busca de um Final Feliz”, acompanhado de subtítulo ainda mais triste: “Quando a existência é definida pelos sonhos de pessoas reais, a esperança surge”.
(Ao menos achei boa a tradução do texto, por Maria Angela Amorim de Paschoal, cujo trabalho eu não conhecia –vi que ela verteu alguns dos best-sellers da Novo Conceito.)
Está certo que o título original não fucionaria na tradução literal: “Behind the Beautiful Forevers” significa “atrás dos belos para sempre”, referência a uma propaganda da L’Oreal com os dizeres “Forever Beautiful. Beautiful Forever”, em cartazes ao redor da favela de Annawadi, na Índia –cenário dessa belíssima reportagem de Katherine Boo.
A esperança do subtítulo é certamente a última sensação que terá o leitor do livro, sobre o qual escrevi no último sábado na Ilustrada. De 2007 a 2010, Katherine Boo conviveu com moradores de Annawadi, favela criada em 1991, à beira do aeroporto internacional de Mumbai, por indianos do interior que foram trabalhar numa ampliação de pistas –efeito parecido com o que os arredores de Brasília testemunharam nos ano 60.
O que impressiona, a ponto de incomodar, é que a todo instante você esquece que se trata de uma não ficção. Tudo ali é verdade, diz Boo –e, para provar, tem mais de mil horas de vídeos, além de fotos, gravações, anotações–, mas ela resolveu, como descreveu a repórter especial Patrícia Campos Mello na resenha também publicada na Ilustrada, “extrapolar magistralmente a técnica ‘mosca na parede’, consagrada pelo novo jornalismo, ao atribuir sensações aos personagens e lhes descrever as intenções”.
Segue a íntegra da conversa que tive por telefone com a autora na semana passada. As fotos da favela de Annawadi acima e no começo da entrevista são de Indranil Mukherjee/AFP/Getty Images. A foto de Katherine na favela, mais abaixo neste post, é de M. Jordan Tierney.
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Quando você escolheu como personagem o garoto Abdul Husain, ele ainda não tinha sido acusado de um crime [de causar a morte de uma vizinha deficiente, que na verdade ateou fogo a si mesma]. Esse é só um dos desenrolares surpreendentes das histórias que você escolheu. Como foi essa seleção dentro do universo de 3.000 habitantes da favela?
No começo, tentei seguir tanta gente quanto possível. Porque não procurava a história mais sensacional, procurava histórias reveladoras sobre a comunidade. Uma coisa que pensei é que talvez a história de uma cidade que em mutação estivesse escondida em sua pilha de lixo. Você podia ver a prosperidade por meio dela. O lixo é o currículo da cidade, seu raio-X. Quando começaram a chegar garrafas de vinho vazias às pilhas, isso foi um sinal importante.
O que me interessava sobre Abdul era ele ser esse garoto que, essencialmente, sustentava uma família de 11 pessoas. Sozinho. Trabalhando com lixo. E o que parecia patético é que, para outras pessoas da favela, isso dava a ele uma vida melhor, mais chance que qualquer um lá. No momento em que conheci ele e sua família, cheguei a achar que estava assistindo ao surgimento de uma família de classe média. Me interessava não só a fonte de renda, mas a volatilidade que vinha com isso e que tornava a vida difícil.
Você diz que não procurava a história mais sensacional, mas encontrou –os acontecimentos com Abdul são inacreditáveis.
Uma coisa estranha, quando você trabalha filmando, porque trabalhei muito com videotape, é rever momentos. Quando vi a fita do momento em que descobri [a acusação contra Abdul e sua família]. Foi chocante… Àquela altura eu não fazia ideia do que ia acontecer. Não tinha ainda explorado o sistema judicial, não esperava que, havendo tantas testemunhas… Não esperava que três pessoas fossem parar na cadeia e que a coisa fosse se estender por tanto tempo. Mas há tantas histórias acontecendo, histórias que estão no livro, que demora até você descobrir qual a central.
Você precisou de tradutores para falar com a imensa maioria dos personagens. Como era esse trabalho, você sentia que perdia algo?
Tive dificuldade para encontrar tradutores que trabalhassem como trabalho, com muita paciência e precisão. O que eu fazia, já que estava filmando, era levar os vídeos para meu marido [o escritor indiano Sunil Khilnani] ou alguém em que confiasse e perguntar: “O que acha da qualidade dessas traduções?”. Tentei pegar gente muito precisa. E trabalhar com aquelas três jovens mulheres [as tradutoras] foi brilhante. Elas estavam comprometidas em ouvir o que as pessoas diziam, não em empacotar para consumo. Isso combinava comigo.
Sempre na tradução você perde algo. Nesta entrevista que estamos fazendo, algo se perderá. Mas você sempre pode procurar achar alguém que seja maníaco para fazer aquilo da maneira certa como você.
Depois de tanto tempo lá, como soube que sua investigação tinha terminado?
Acho que foi quando abri o jornal, um dia, e vi uma história de uns cavalos caindo de uma ponte. E pensei: esses devem ser os cavalos de Robert [um morador da favela que costumava pintar seus cavalos com linhas pretas para parecerem zebras]. Em dado momento, todo mundo na cidade estava prestando atenção nos cavalos caindo da ponte. Quando vi aquilo, a preocupação com os cavalos, isso enquanto eu escrevia sobre tantas mortes para as quais ninguém dava atenção, doenças, assassinatos e suicídios que ninguém registrava… Eu estava tão interessada, e foi tão triste perceber que a morte de dois cavalos fosse o que trouxesse o senso de justiça em Annawadi.
Você disse numa entrevista que decidiu fazer o livro ao ouvir amigos, num jantar, questionando se as transformações econômicas na Índia estavam mudando ou não a vida dos mais pobres. Pelo que você investigou, pode-se dizer que sim?
Não há dúvida de que a globalização trouxe mais riqueza para indianos, para a maior parte das pessoas. Nos aspectos mais ordinários, especialmente, foi uma grande mudança. O que diria é que não é tão simples quanto as estatísticas fazem parecer. E uma das coisas interessantes foi notar como as estatísticas eram diferentes do que se via no dia a dia. Há tanta morte e doença, malária, que nem entra nas estatísticas oficiais… Há muitas escolas que existem só no papel. Os índices de criminalidade, assassinatos, de nenhuma maneira refletem a quantidade de violência que há na sociedade. Não só em Mumbai, em todo lugar.
Não é como se a globalização não tenha melhorado nada para ninguém. Tenho certeza de que centenas de milhares de rendas tiveram crescimento significativo, mas ainda é muito difícil para os mais pobres.
Em entrevista recente à Folha, o escritor Suketu Mehta, de “Bombaim, Cidade Proibida”, disse que uma coisa que poucos sabem sobre Mumbai é que 60% da população vive em favelas, incluindo engenheiros, médicos, a classe média… Não era o caso de Annawadi, que era mais pobre do que isso.
Isso entra com a definição de favela. Há grandes favelas no centro da cidade, nas quais muita gente de classe média vive, e onde há muitos serviços. Essas são as mais famosas. No centro há poucos outros lugares para pessoas da classe média viverem. São lugares onde estudantes de faculdade ficam, porque é mais fácil se estabelecer. Mas meu trabalho era com os mais pobres.
Você visitou muitas antes de escolher Annawadi?
Estive por toda da cidade nos três primeiros meses. Desde o começo, estando no centro, me dei conta de que havia favelas com as quais não queria trabalhar, porque não eram representativas das experiências mais difíceis. Havia também similaridades entre as favelas da periferia. Mas o que me chamou a atenção em Annawadi foi que, como o aeroporto ao lado estava crescendo, as pessoas tinham essa ideia de que a vida delas também podia se transformar.
Você descreve momentos íntimos das pessoas em família, inclusive gestos durante o jantar, conversas. Você comenta ao final do livro que repetia entrevistas à exaustão para pegar os detalhes, mas muitas vezes eu me perguntava: ela estava lá quando essa cena aconteceu para descrever tão detalhadamente?
Se descrevo uma cena em que alguém faz um gesto, eu definitivamente estava lá. Também gravei tudo em vídeo, o que altera o processo de escrita quando você volta e revê a cena. Sempre usei áudio como jornalista, essa foi a primeira vez que usei vídeo desse jeito.
Algo desse material foi lançado em vídeo, ou você pretende fazer isso?
Nos Estados Unidos saiu uma versão em e-book com quatro vídeos curtos, um sobre a Fátima, a deficiente que ateou fogo a si mesma, outro sobre Manju, a garota que estava na universidade, outro sobre o trabalho de Abdul… Eu não estava registrando tudo para fazer um filme, era para minha própria capacidade de ser acurada depois. Para poder checar. E, quando falava sobre corrupção e dava nomes, isso me dava mais confiança por ter aquilo gravado.
E acho que há uma questão de privacidade. Nos vídeos há tanta gente fazendo tanta coisa… E não sou cameraman, não sei exatamente o que estou fazendo, as pessoas veem meus vídeos e riem. As pessoas me dizem para fazer um filme, mas não sei.
Uma coisas interessante desse trabalho foi que crianças na favela aprenderam e começaram a usar minha câmera. Eles pegaram vídeos incríveis. Perceberam que havia momentos… Como quando um catador de lixo que morreu. Ele foi espancado pela polícia, e um menino falou: “Me dá sua câmera”. E tirou fotos. Ele sabia que o que os policiais tinham feito era errado. Foi um senso de poder que ele teve. Houve muitas situações como essa. Às vezes eu entrevistava e um menino de nove anos estava filmando [risos].
Você sabe quantas horas tem de filmagem?
Não sei… Acho que devem ser mais de mil horas, mas não sei exatamente quanto.
Outra coisa que Suketu Mehta fala sobre favelas, em comparação com as do Brasil… Não sei se você já esteve no Brasil.
Não. Meu marido diz que tenho que conhecer. Ele acha que é um dos lugares mais interessantes do mundo. Leio tanto sobre as mudanças daí que queria mesmo ir. Mas não para escrever outro livro. Só para aprender.
Mehta diz que as favelas no Brasil são mais limpas e com mais infraestrutura, mas mais violentas. Você não conheceu as favelas daqui, mas acha possível comparar com o que conhece de comunidades pobres americanas, por exemplo?
Uma coisa que me impressionou é que há muita violência na favela indiana, mas não uma violência de arma de fogo. As brigas não terminam em morte tão rapidamente, e uma das coisas que penso é por quanto tempo vai ser assim na Índia. Daqui a dez anos será cheio de armas como nas cidades americanas? É uma questão em aberto.
Há violência, mas num grau diferente. O que tento mostrar no livro é que hesito quando falam sobre a Índia como uma sociedade não violenta, como se todos andassem pensando em Gandhi. Há muita violência, estupro, que não é registrada. E ninguém pode dizer o quanto porque não é registrado. Acho que, nas estatísticas que li, a Índia tem menos estupro que a Suécia, e a gente sabe que isso não é verdade. A realidade da vida feminina não entra nas estatísticas.
Por outro lado, nas favelas indianas o histórico sistema de castas local, de segregação, é menos rígido, pelo que você mostra.
Sim, e é por isso que tanta gente vai para lugares como Annawadi. Vão para a cidade grande e pela primeira vez podem escolher seu emprego, em vez de ter de exercer o trabalho designado para sua casta. Uma coisa interessante é que crianças de sete, oito anos, quando você pergunta a elas sobre suas castas, algumas nem sabem do que você está falando. Não é relevante. E você pergunta para as mães, e isso nem era segredo delas, só não é mais uma parte central de suas identidades.
Quando falo no livro da amizade entre [as adolescentes] Meena e Manju, o fato de Manju ser de uma casta um pouco superior, porque Meena é da casta mais baixa, isso não interfere na amizade delas. Mas as pessoas acima de 50 anos têm muita consciência de suas castas. Quando você vai para as vilas, na Índia, você vê os dalits [casta mais baixa] ainda vivendo longe da cidade –eles não são autorizados a viver dentro da vila.
Vivendo tanto tempo com eles na favela, foi possível não se envolver com o assunto da sua reportagem? Passar de observadora a personagem?
Tem um ponto em que você deixa de ser apenas jornalista e se torna apenas humano, sempre, nesse tipo de reportagem. Tem um ponto em que você tem que se envolver. Há um caso, no capítulo 16 do livro, quando uma mulher está sendo arrastada para fora de casa e atacada por homens bêbados, que achei que ia terminar em estrupo. Comecei a gritar. De uma maneira idiota e louca, acho que choquei todo mundo. Mas você faz julgamentos o tempo todo.
Com tudo o que investigou sobre a acusação contra Abdul e sua família, não poderia ter interferido no julgamento?
Meu deus, no curso inteiro do julgamento, que durou anos, Abdul nunca teve seu testemunho tomado. O juiz não queria, nem o advogado queria ter ligação nenhuma comigo. É como tentar ir para a polícia e falar há algo errado. Minha experiência com a polícia foi muito ruim. Há essa ideia de que você é jornalista e pode ajudar. Isso não funciona, pela minha experiência
Você acha que o livro pode ajudá-los em Annawadi? Ou já os ajudou?
Acho que sim. Uma das coisas que fiz, e acho que foi a coisa certa, foi me certificar de que o livro saísse exatamente ao mesmo tempo nos Estados Unidos e na Índia. Se fosse ser atacado, se dissessem que não era verdade, que isso ficasse claro para todos.
Mas, ao contrário, o que aconteceu foi que gente das classes mais altas e do governo indiano se assustou, disse que não fazia ideia. E começaram as conversas. Boas coisas aconteceram em todos os níveis a partir dessas conversas. Não é que o livro tenha mudado as coisas instantaneamente, mas acho que houve e há muita gente que se preocupa. Está havendo a discussão sobre o que fazer para que os hospitais tenham remédio, para que as escolas ensinem crianças em vez de apenas dar dinheiro aos políticos.
E, desde a primeira parcela de pagamento de direitos autorais do livro, que foi em agosto, eu comecei a devolver à comunidade, para ajudar em saúde e educação.