Clarice: 'Eu pinto tão mal que dá gosto'
14/05/13 13:18Escrever sobre Clarice Lispector é sempre uma oportunidade de publicar fotografias de Clarice Lispector, autora de fotogenia incomum para o meio literário (digam o que quiserem sobre cadernos de literatura, mas nunca foi simples encontrar grandes fotos para ilustrar resenhas).
Neste post, nada de fotos da autora. Neste sentido, basta o retrato em nanquim acima, de Alfredo Ceschiatti, um dos cinco ou seis que a autora recebeu de artistas e manteve nas paredes de seu apartamento no Leme, no Rio. Um retrato para fazer jus ao tema do post, o volume “Clarice Lispector: Pinturas”, do angolano Carlos Mendes Sousa, que acaba de sair pela Rocco.
Mendes Sousa, professor de literatura brasileira na Universidade do Minho e um dos maiores especialistas do mundo em Clarice, fez um estudo de sua relação com as artes plásticas, seja como colecionadora, seja como jornalista, seja como, hm, bem, artista.
Clarice não pintava bem como escrevia, é verdade. Mas o que escrevia, diz Mendes Sousa, transparecia muito do que pensava sobre as artes plásticas.
“Pergunto-me também como é que vou cair de quatro em fatos e fatos. É que de repente o figurativo me fascinou: crio a ação humana e estremeço. Também quero o figurativo assim como um pintor que só pintasse cores abstratas quisesse mostrar que o que fazia por gosto, e não por não saber desenhar” (trecho de “A Hora da Estrela”)
Mais do que isso, argumenta o autor, “a atmosfera pictórica contamina a escrita de Clarice Lispector em aspectos mais ou menos visíveis, como os jogos de luz e sombra, os recortes formais, as descrições, a presença da cor etc., elementos observáveis especialmente nos planos narrativo ou estilístico-retórico”. Como nesse trecho de “Água Viva”:
“Vou te dizer uma coisa: não sei pintar nem melhor nem pior do que faço. Eu pinto um ‘isto’. E escrevo com ‘isto’ –é tudo o que posso. Inquieta. Os litros de sangue que circulam nas veias. Os músculos se contraindo e retraindo. A aura do corpo em plenúrio. Parambólica –o que quer que queira dizer essa palavra. Parambólica que sou. Não posso me resumir porque não se pode somar uma cadeira e duas maçãs. Eu sou uma cadeira e duas maçãs. E não me somo.”
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A segunda metade do livro é dedicada à parte que deve interessar a mais leitores, com duas dezenas de pinturas feitas pela autora –dezesseis delas foram tema de mostra do Instituto Moreira Salles no Rio, em 2009.
Mendes identifica dois movimentos que se impõem nas pinturas de Clarice, a fuga e a concentração, e desenvolve uma análise sobre representações, aproximando-as também do que ela escrevia. Mas usa as palavras da própria, em conferência na Universidade do Texas, em 1963, para resumir, de forma muito mais simples, por que ela pintava:
“Quanto ao fato de escrever, digo –se interessar a alguém– que estou desiludida. É que escrever não trouxe o que eu queria, isto é, paz. Minha literatura, não sendo de forma alguma uma catarse que me faria bem, não me serve como meio de libertação. […] O que me ‘descontrai’, por incrível que pareça, é pintar, e não ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro meus, entre aspas, ‘quadros’ a ninguém. É relaxante e ao mesmo tempo excitante mexer com cores e formas, sem compromisso com coisa alguma. É a coisa mais pura que faço.”
O que ela pensaria de ver sua produção mais pessoal em um livro? Bem, vai saber. Mas essa acima é uma declaração de 12 anos antes da maior parte da criação dela como pintora, em 1975. Mais tarde, Clarice não só mostraria os quadros a amigos como presentaria alguns deles, como Nélida Piñon, Maria Bonomi e Autran Dourado, com as obras.