Zambra, Joyce e as lacunas de leitura
19/05/12 16:41O trecho acima é de “Bonsai” (Cosac Naify), livro bem lindo do chileno Alejandro Zambra, 36, que será companheiro de mesa do catalão Enrique Vila-Matas agora na Flip. A vantagem de “Bonsai” é que ninguém precisa inventar que leu; dá para matar em uma hora e meia, se tanto.
É um livreto de 96 páginas, mas naquela diagramação da Cosac que a gente conhece, feita de brancos generosos. Seria um desses “romances de capítulos curtos, de quarenta páginas, que estão na moda”, como ouve a certa altura Julio, o moço que não leu Marcel Proust, mas para mim fica mais naquela zona nebulosa entre uma novela e um embrião de algo maior.
“Bonsai” poderia ser acusado de parecer demais uma certa literatura que se faz hoje, auto-referente, orgulhosa do que é, ou então de partir de uma escolha recorrente entre iniciantes (coisa que Zambra, hoje celebrado no exterior, era quando escreveu), que é contar uma história romântica. É verdade que o livro é tudo isso, e tanto mais por isso impressiona que seja uma leitura tão boa. Se é do tipo que fica na cabeça, bem, alguém me pergunte no mês que vem.
O romance ganhou o prêmio do Conselho Nacional do Livro do Chile em 2006, e foi depois dele que Zambra entrou na lista de 22 melhores jovens autores hispano-americanos da Granta.
O que me intriga é que aquelas modestas 40 páginas (na versão sem diagramação da Cosac) tenham rendido um longa-metragem, exibido em Cannes no ano passado. Ao ver o trailer me lembrei de outro filme (“Cão sem Dono”) que me impressionou por sair de um livro magrinho, “Até o Dia em que o Cão Morreu”, do Daniel Galera –mas pelo menos este tem 104 páginas, e isso na diagramação menos conceitual da Companhia das Letras.
O trailer de “Bonsai”, de Cristián Jimenez:
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Queria voltar ao trecho do livro de Zambra em que Julio diz que leu “Em Busca do Tempo Perdido” aos 17. Porque ele tinha lido muita coisa até então, Kerouac, Nabokov, Capote, mas não Proust. Também não li Proust aos 17 (nem depois), o que me lembrou uma teoria antiga de que há coisas que precisam ser lidas na adolescência, antes que o tempo fique escasso demais.
Meus pais nunca foram de ler romances –meu pai lê até dicionário (verdade), mas nunca ficção; de leitura da minha mãe quase só me lembro de “Confesso que Vivi”, do Neruda, um livro de cabeceira no sentido mais honesto da expressão: nunca esteve em outro lugar.
Mas, como os pais de muita gente que gosta de ler, o meu comprou os clássicos de banca da Abril, e assim conheci Dante, Shakespeare, Cervantes, Pirandello, Zolá, Flaubert, Tolstói, Dostoiévski e deveria ficar listando aqui por linhas e linhas para me redimir da confissão a seguir.
A ela, enfim. Em casa não tinha “Ulysses”, nem “Em Busca do Tempo Perdido”, nem “A Montanha Mágica”, nem outros que prefiro nem listar para não tornar essa confissão ainda mais constrangedora, já que eu poderia muito bem tê-los pegado na biblioteca de Petrópolis antes de usar isso como desculpa, embora não esteja certa de que estariam lá. Meu conhecimento de Joyce se restringe a “Retrato de um Artista Quando Jovem”, que adorei depois de me irritar nas primeiras páginas, o de Mann não vai além de “A Morte em Veneza”, e assim, pelas beiradas, pelo menos eles e outros autores fundamentais não me passaram em branco.
Isso tudo antes de eu desconfiar de que um dia trabalharia com livros e que, portanto, não conseguiria ler mais quase nada por puro interesse pessoal.
Agora me sai essa linda tradução do “Ulysses” (Penguin), pelo Caetano Galindo, e me pego na seguinte situação: se for esperar para ler antes tudo o que tenho de ler a trabalho, nunca começo, porque o trabalho sozinho já exige mais leitura do que consigo dar conta.
Como não ia andar para cima e para baixo com um livro de mil e tantas páginas na bolsa (aquela introdução bem que podia ser menorzinha, vai, para ajudar), a edição linda vai ficar em casa, mas joguei o original em inglês no meu Kindle para as horas livres. Vou ler catando milho, quando der. Se um dia terminar, eu conto. É claro, não atravessaria mil páginas pra guardar segredo.
Não imagino que seja nenhum bicho de sete cabeças, embora tenha largado nas primeiras páginas todas as vezes que tentei. Também não acho que mente quem diz que leu, como tantos pensam, embora desconfie de que boa parte largou pela metade e omite esse detalhe. Aconteceu comigo e “Os Irmãos Karamazov”, que é tão bom: parei faltando um terço; quando fui voltar, meses depois, percebi que teria de voltar tipo do começo, porque já tinha esquecido um monte de coisa; o resto da história você pode imaginar.
Sobre fingir que se leu o que não foi lido, e atire o primeiro “Catatau” quem nunca fez isso (esse, aliás, eu li, de verdade), queria encerrar este post com um último retorno ao “Bonsai”.
Julio mentiu sobre ter lido “Em Busca do Tempo Perdido” para Emilia, e ela, ficamos sabendo na página seguinte, retribuiu a mentira. Um dia eles resolvem “reler” juntos, e então Zambra escreve:
“Antes de começar a ler concordaram, por precaução, que era difícil para um leitor de ‘Em Busca do Tempo Perdido’ recapitular sua experiência de leitura: é um desses livros que mesmo depois de lidos a gente considera pendentes, disse Emilia. É um desses livros que vamos reler sempre, disse Julio.”
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Peço desculpas pelas ausências prolongadas. Sempre tento arrumar tempo entre fechamentos da “Ilustríssima”, apurações para o Painel das Letras, reportagens para o jornal e, bem, a vida lá fora (ó eu fazendo drama), mas às vezes o tempo engole a gente.