'Não comam Lacta nem bebam guaraná': as revistas modernistas no Brasil
01/04/13 21:15A primeira edição da “Klaxon”, a mais famosa revista modernista do Brasil, lançada a 15 de maio de 1922, trazia um anúncio com as palavras “coma Lacta” dispostas na página num estilo um tanto concretista, movimento que só surgiria décadas depois. A segunda edição incluía um anúncio do guaraná Espumante, não menos criativo, com alternativas de bebida rabiscadas –assim como o da Lacta, assinado pelo poeta Guilherme de Almeida. São esses:
Mas as propagandas eram modernas demais para os empresários, que deram para trás e cancelaram anúncios previstos para as edições seguintes. Como resposta, no quarto número, os klaxistas soltaram uma nota debochada, assumindo seu papel de “únicos representantes do mais alto gosto paulista”. Orientavam: “NÃO COMAM LACTA NEM BEBAM GUARANÁ”.
A história acima está no ótimo “Modernismo em Revista: Estética e Ideologia nos Periódicos dos Anos 1920” (Casa da Palavra), de Ivan Marques, que narra a curta e tumultuada trajetória das sete principais revistas modernistas da década de 20 no Brasil –e que terá lançamento nesta quarta, dia 3, às 19h, na unidade Fradique da Livraria da Vila, em São Paulo.
Escrevi sobre o livro no início do mês passado, numa capa da Ilustrada que incluía o já citado aqui “A Revista do Brasil no Século XIX”.
Segue, abaixo, a entrevista feita via Facebook com o Ivan Marques.
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Qual foi o papel das revistas dentro do modernismo no Brasil?
As revistas modernistas, não só no Brasil, foram um dos principais veículos de atuação das vanguardas, que normalmente são associadas com a destruição –da velha arte, dos velhos conceitos. Mas aqui elas tiveram um papel diferente. Desde “Klaxon”, que foi a mais ousada, lançada logo depois da Semana de 1922, as revistas tiveram um papel construtor. Foram mais um espaço de debate e de autocrítica do modernismo do que propriamente de ataque das convenções. As revistas são a principal demonstração da conjunção de esforços que foi necessária para articular o modernismo num país atrasado, pré-moderno, como o Brasil.
E que influência tiveram sobre a produção artística?
Nelas saíram muitos textos que só tempos depois apareceriam em livros. Poemas de Drummond, que se tornou poeta respeitadíssimo só pela atuação nas revistas. Em livro, ele só estrearia em 1930. Todos os mineiros surgiram nelas: além de Drummond, houve Pedro Nava, Emílio Moura. Os grandes poemas de Manuel Bandeira saíram primeiro em revistas e só depois, em 1930, no livro “Libertinagem”. Capítulos inéditos de “Macunaíma” também saíram antes nelas.
O debate das revistas é profundo e atualíssimo. Diz respeito às condições de produção de arte e literatura de vanguarda num país periférico como o Brasil. Na Argentina, elas tiveram a mesma repercussão. Acho que, na década de 1920, elas foram mais importantes do que boa parte do que foi publicado em livros, até porque a edição de livros era bastante restrita. Olhar essas revistas em conjunto, e não separadamente, como faziam os estudos anteriores, dá uma ideia mais exata da construção do modernismo brasileiro. Pela comparação, é possível corrigir uma série de ideias equivocadas, repetidas nos manuais e nas histórias literárias.
Que tipo de ideias equivocadas?
Para começar, a ideia de que a vanguarda de 1922 foi destruidora, polêmica. Como disse, o esforço de construção e de aprofundamento crítico da produção modernista estava em primeiro plano. Outro exemplo: os manuais dizem que a revista “Festa”, do Rio, era espiritualista e universalista. Mas a leitura da revista mostra que a preocupação deles era também com a arte nacional. Também se diz que o nosso “primeiro modernismo” ou “modernismo heroico” se preocupou apenas com questões estéticas. O que as revistas mostram, desde o começo, é a preocupação com a busca da identidade nacional. Para os modernistas, a afirmação dessa identidade era fundamental para que o movimento brasileiro não fosse apenas uma imitação leviana das vanguardas estrangeiras. Nas revistas o peso das questões ideológicas é grande, ao lado da discussão estética, que está quase sempre atrelada à questão nacional.
Quais foram os critérios para escolher as sete revistas para o livro?
Busquei as que existiram no período do chamado “modernismo heróico”, dos anos 1920. A primeira delas, “Klaxon”, é de 1922. A última, “Antropofagia”, de 1928. É o período forte da cultura modernista, a fase de combate. Também busquei revistas que tiveram impacto nacional, não apenas presas aos seus grupos de origem. Essas sete revistas existiram por conta do esforço das mesmas pessoas. À medida que uma desaparecia, outra surgia. Daí o debate pôde ser aprofundado ao longo da década. Mário de Andrade foi a figura que costurou a história das revistas. Além de ser um dos criadores de “Klaxon”, foi o principal coadjuvante das mineiras “A Revista” (BH) e “Verde” (Cataguases). Foi ele o responsável por essa visão construtora.
Quando você fala sobre impacto nacional, considerando uma entrevista como a “Verde”, do interior, você se refere a impacto nos grandes centros, no eixo Rio-São Paulo, ou elas repercutiam também em outros Estados e regiões?
Sim, repercutiam em outros Estados. Vários modernistas, sobretudo Mário, se preocuparam em distribui-las para todo o Brasil e para fora dele. Uma revista como a “Verde” foi genuinamente um órgão nacional do modernismo, embora fosse feita por rapazes de uma pequena cidade de Minas. O mesmo se pode dizer de “A Revista”. Os mineiros foram responsáveis por ela, mas foi um porta-voz de todos os modernistas em 1925. Essas sete formam um conjunto importante.
E no entanto os próprios responsáveis por elas, como Rosário Fusco, ainda no caso da “Verde”, as chamariam de “folclore”. Como você vê isso?
Essa questão é interessante. Os modernistas, depois de velhos, parecem ter tido certa vergonha dessa fase do modernismo, como quem tem vergonha da própria infância. Mas elas foram importantes, sim. Os textos que publicaram, de criação e de crítica, são da maior relevância. Talvez essa “folclorização” (= desvalorização) do modernismo tenha começado em 1942, com a conferência de Mário sobre os 20 anos do modernismo. Ele disse que tudo fora uma brincadeira, uma orgia. Esse balanço de Mário, como o depoimento do Fusco, é exagerado.
As revistas foram importantes não só para o desenvolvimento da cultura modernista, mas também porque a publicação de livros nos anos 1920 ainda era escassa. Elas talvez tenham sido a principal obra dos modernistas na década. No caso de “Verde”, com certeza a revista foi a principal coisa que fizeram. Com exceção de poucas obras (“Macunaíma”, de Mário, “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de Oswald), o movimento modernista quase não produziu livros nos anos 1920. A criação circulava nas revistas. E também o debate, a autocrítica. Ali o modernismo brasileiro foi encontrando a sua cara, seus caminhos e seus impasses
Você comenta no livro que boa parte dos textos não eram assinados. Esses textos são de autoria facilmente identificável?
Na maioria dos casos, sim. Quando as revistas foram reeditadas e ganharam os estudos individuais, nos anos 1970, 1980, ainda era possível verificar a autoria com os modernistas ainda vivos. Há casos em que não foi possível. Explico no livro que, de fato, essas ideias não pertenciam a um autor só, mas diziam respeito ao conjunto dessas vozes modernistas que se exprimiam nas revistas. O questionamento da autoria, no final, também diz respeito à ação da vanguarda. Havia o interesse de fortalecer a ideia de grupo, de ações que não eram individuais.
Curiosamente, os modernistas acabaram construindo vozes tão particulares, tão pessoais: Mário, Oswald, Drummond, Bandeira. É impossível confundi-los. Mas nas revistas as ideias pareciam mesmo não ter autoria específica. Pertenciam a todos.
Como essas revistas eram produzidas?
À exceção da “Festa”, que teve um mecenas, não havia dinheiro para a produção delas. O que havia eram vaquinhas literárias, apoios localizados. Elas acabavam por falta de condições. Mas também porque é difícil publicar por muitos anos uma revista dessa natureza, que tem mesmo o caráter efêmero tão frequentemente atribuído às ações de vanguarda. Sem dinheiro nenhum, público nenhum, elas duraram pouco. Sofriam do que foi chamado “mal dos três números”. No terceiro número, desapareciam, como ocorreu com “Estética” (RJ) e “A Revista” (MG).
Você escreve que as crônicas se tornaram uma das melhores traduções do modernismo. Embora, na verdade, sejam anteriores ao movimento. De que maneira o traduzem?
Sim, elas eram importantes e praticadas desde o século 19. A hipótese é que, a partir da década de 1920, a crônica encontrou sua linguagem específica, seu jeitinho brasileiro, sua leveza, simplicidade. A partir da influência que sofreu do movimento modernista. Talvez a crônica seja mesmo das melhores traduções do modernismo. E nas revistas houve os primeiros experimentos. Crônicas de Drummond, já definindo novos parâmetros para esse gênero. Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, todos beberam nessa fonte modernista.
As crônicas traduzem o modernismo em suas características fundamentais: temas cotidianos, linguagem coloquial, tom despretensioso etc. É a “vida ao rés-do-chão”, como disse muito bem Antonio Candido, num texto famoso sobre a crônica brasileira. E ele pensava, claro, nessa tradição moderna da crônica, formada a partir do modernismo.
Que legado que essas revistas nos deixam, olhando 90 anos depois?
Elas são o testemunho vivo de um dos períododos mais agitados da cultura brasileira. E mostram, entre outras coisas, que o modernismo não se limitou à Semana de Arte Moderna e menos ainda à cidade de São Paulo. O movimento em 1922 era ainda imaturo e se aprofundou ao longo da década. Um dos canais desse aprofundamento foram as revistas. A leitura delas, com 90 anos de distância, mostra as dificuldades de construção do modernismo num país como o Brasil. A gente tem muitas vezes a ideia de que o país estava “pronto” para o moderno, mas isso não é verdade. Esse “moderno” custou caro e exigiu uma série de esforços.