"Me fascina o passado parecer mais intenso que o presente", diz John Banville
20/02/13 17:57O irlandês John Banville, autor do lindíssimo “O Mar” (Nova Fronteira), vencedor do Man Booker Prize 2005, vem neste ano para Flip, o que levou a Globo a programar seu romance mais recente, “Luz Antiga”, para junho. Minha entrevista com ele para o texto da Ilustrada de hoje foi motivada por outro lançamento, de “O Cisne de Prata” (Rocco), dentro da série de policiais que assina com o pseudônimo Benjamin Black. Falo um pouco do livro no link acima.
Desde 2006, quando começou a lançar policiais como Benjamin Black, inspirado pelos romances do belga Georges Simenon (1903-1989), Banville quase não escreve como Banville. Além de “Luz Antiga”, lançou só “Os Infinitos” (Nova Fronteira), que nem faz jus ao escritor que ele é. No mesmo período, foram sete livros como Black, com mais um previsto para este ano.
Em resumo, ele sofre mais para escrever como Banville, obcecado pela frase perfeita, e não vende tanto assim. Como Black, escreve com facilidade, sem nenhuma ambição de ser artista, e lidera listas de mais vendidos. É assim que funciona e, ele diz, é absolutamente natural.
Ele fala também sobre as especificidades de seus romances policiais, a “conversão” a Benjamin Black e a Wikipedia, entre outros temas, na entrevista abaixo, concedida por e-mail.
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Em vez de centrar a história no ponto de vista de Quirke, o protagonista, “O Cisne de Prata” alterna capítulos na voz dele com as de outras personagens, incluindo a vítima. O resultado é que os leitores acabam sabendo muito mais do que o personagem que investiga a história. Por que optou por esse formato?
Acho romances policiais fascinantes do ponto de vista técnico. Nesse livro, foi interessante alargar a perspectiva e trazer, embora obliquamente, as vozes, ou ao menos as sensibilidades, de outros personagens. E com isso fazer Quirke desconhecer detalhes que outros personagens, e os leitores, sabem. Mas, enfim, Quirke geralmente progride por meio da ignorância dos fatos. O que admiro nele como protagonista é que ele não é um superdetetive. Se você quer o oposto de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot, esse é Quirke. Ele é um pouco estúpido, como o resto de nós –humanos, em outras palavras.
O próprio Quirke é diferente de um protagonista que poderíamos esperar em um policial. Ele é um patologista que, em “O Cisne de Prata”, mente para a Justiça no único momento em que poderia ajudar na investigação. Como pensou esse personagem?
Quirke é movido pela curiosidade. Talvez eu esteja caindo num freudianismo barato, mas acho que o fato de ele mesmo não ter um passado do qual se lembre completamente o compele a mergulhar nas vidas de outras pessoas, a querer descobrir segredos alheios. Quando ele olha para trás, para anos anteriores de sua vida, há apenas um branco, e isso é algo que o atormenta. Então, quando encontra um “branco” que é um crime não resolvido, não resiste a investigar.
Assim como em “O Cisne de Prata”, que retoma o protagonista de “O Pecado de Christine”, em “Luz Antiga”, que também sairá neste ano no Brasil [pela Globo, em junho], você recupera um protagonista de romances anteriores. Esse é um procedimento comum em romances policiais, mas nem tanto fora da ficção de gênero. Por que voltar a personagens interessa ao sr.?
De fato não sei dizer por que retornei à história de Alex Cleave e de sua trágica filha Cass. Depois que leu “Eclipse” [inédito no Brasil], em que esses personagens aparecem, meu amigo Rodrigo Fresan [escritor argentino] me implorou para escrever um “livro de Cass”. “Luz Antiga” não é esse livro, mas revisita Alex e sua mulher, Lydia, dez anos depois da morte da filha. Devo ter achado que havia algo a resolver com Alex, Cass e o mistério da morte de Cass que continuava atormentando seus pais. É claro, Alex desconhece a conexão de Cass com Axel Vander, o crítico literário que Alex, que é ator, está prestes a interpretar num filme. Isso adicionou algum frisson para mim, como também, eu espero, para leitores familiares com “Eclipse”.
Quirke é atormentando pelo passado e pelo senso de perda, assim como Alex em “Luz Antiga”. O quão diferente é escrever sobre esse tema como Banville e como Black?
Bom, Quirke é atormentado de uma maneira diferente. O passado dele é um lugar terrível e escuro, uma espécie de Inferno anterior à morte. Para Alex, o passado é um mundo iluminado, que parece mais vívido para ele do que o mundo presente em que ele vive. Sempre me fascinou a percepção de que o passado sempre nos parece mais intenso que o presente. Por que deveria ser assim? Afinal, o passado foi presente um dia, e tão normal e chato quanto o presente presente. A resposta, eu suspeito, é que como temos de viver o presente, não conseguimos vê-lo com clareza e, consequentemente, não o valorizamos. Apenas quando ele vira passado vemos como era extraordinário. Essa é uma tragédia de nossas vidas, que nós –a maior parte de nós– não conseguimos valorizar o que temos até que isso se perca.
Como Georges Simenon influenciou sua “conversão” em Black?
Nunca tinha lido Simenon [romancista belga, autor da série do inspetor Maigret] até um amigo, o filósofo inglês John Gray, me encorajar a ler o que Simenon definia como seus “romances psicológicos”. Quando li, fiquei deslumbrado. Esses livros, entre os quais estão “Dirty Snow”, “Monsieur Monde Vanishes” e “The Strangers in the House”, para ficar apenas em três, são para mim tão bons quanto qualquer coisa escrita no século 20, superiores aos trabalhos de Sartre ou Camus, por exemplo –Simenon é o verdadeiro romancista existencialista. Ocorreu a mim que deveria tentar escrever algo similar, usando um estilo simples e direto, um vocabulário restriro, e nenhum dos ornamentos “literários” que Banville usaria. Então Benjamin Black nasceu.
O verbete dedicado ao sr. na Wikipedia informa que o sr. chama romances policiais de “ficção barata”, mas com o aviso de que falta a fonte dessa informação. Essa é mesmo uma opinião sua?
Wikipedia! Sempre informando tudo ligeiramente errado. Escrevi em algum lugar, como ironia, que quando me tornei Benjamin Black descobri em mim uma capacidade para a “ficção barata”. Não era para ser levado a sério. É claro que existe muita ficção policial barata por aí, mas até aí também há muita ficção literária barata. O trabalho de Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Richard Stark, James M. Cain –se isso é barato, então me mostre o que é caro.
O sr. costuma dizer que escrever como Banville é muito mais trabalhoso que escrever como Black. Incomoda saber que Black interessa mais aos leitores?
Acho que eu me incomodaria se Banville vendesse mais do que Black. Black trabalha num gênero popular, e, por consequência, suas vendas são melhores. É simples assim.
O sr. tem publicado mais como Black do que como Banville –o placar desde 2006 está em sete a dois. É uma experiência mais satisfatória a de escrever sem se preocupar tanto com a estrutura?
Talvez não mais satisfatório, mas diferente. Eu gosto do trabalho que os livros de Benjamin Black envolvem e tenho orgulho desses livros, como um artesão teria orgulho de um trabalho bem feito. Black não exige tanto de si mesmo como Banville, o que é uma outra maneira de dizer que Black não é um artista nem tem essa ambição.
Como é ver seu trabalho adaptado para a televisão [as histórias de Quirke foram adaptados no Reino Unido]?
Sou muito interessado em cinema e TV. Escrevi alguns roteiros, sempre gostei disso. E o primeiro livro de Benjamin Black, “O Pecado de Christine”, começou como um roteiro de TV. Uns dez anos atrás foi convidado a escrever uma minissérie de TV, ambientada nos anos 50. Escrevi três roteiros de três horas de duração cada um. Quando ficou claro que eles não seriam filmados, tive a ideia de transformá-los em romance. E foi o que eu fiz.
O sr. já esteve no Brasil?
Sim, passei uma semana ou duas em São Paulo alguns anos atrás e visitei Paraty muito rapidamente no caminho para casa. Estou ansioso por ficar mais tempo desta vez.