A Ilustrada de hoje informa que 18 mil títulos da Biblioteca Mário de Andrade, a segunda maior do país –perdendo apenas para a Fundação Biblioteca Nacional–, foram infestados por fungos ao longo de 2012, no final da gestão anterior.
Abaixo, trechos da conversa com Luiz Bagolin, que assumiu oficialmente o cargo de diretor da instituição no mês passado, e que vem desde março lidando com a questão. Ele fala também sobre projetos para sua gestão.
O novo diretor da Biblioteca Mário de Andrade, Luiz Bagolin (Foto Eduardo Anizelli/Folhapress)
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FUNGOS NO ACERVO
Me chamou a atenção a ocorrência, em algumas prateleiras de alguns andares do acervo, de fungos nos livros. Chamou a atenção porque não deveria haver fungos, já que o sistema é climatizado. Dos 23 andares, em quatro, não nos andares inteiros, mas em algumas prateleiras, começamos a perceber uma situação mais grave de fungos. Essa situação já tinha sido acusada no final do ano passado. Aí foram feitas as comunicações para a prefeitura, para a Secretaria Municipal de Cultura, mas as providências não chegaram a ser tomadas. Tentei estabelecer uma divisão do problema. Primeiro, você precisava entender por que estava ocorrendo a infestação. Chamamos o IPT [Instituto de Pesquisas Tecnológicas], que prontamente nos atendeu.
Tivemos que correr para arrumar recursos, porque a biblioteca em março já estava com 90% dos recursos empenhados e não tinha dinheiro para uma contratação. Consegui essa verba, e a bióloga fez um trabalho muito minucioso. Durou 30 dias o exame, e, de posse do diagnóstico, passei para a segunda parte da ação, que é mais complicada, de separar os livros que estão infectados e higienizá-los.
Isso está sendo feito. Só consegui recentemente recurso para uma contratação emergencial para limpar os livros. E vamos casar esse processo de higienização com a restauração de alguns livros. Os fungos não escolhem lugar, então há livros da coleção geral e livros raros, também, que foram atacados. Não sei dizer exatamente quantos foram atacados porque os fungos não atacam individualmente os livros, os que estão em contato também têm de ser higienizados. Mas conseguimos contratar a empresa para a higienização. Essa verba saiu do gabinete da Secretaria Municipal de Cultura, uma suplementação orçamentária de R$ 400 mil, que não são gastos imediatamente. O trabalho dura de seis meses a um ano para higienização e restauração.
A fachada da Mário de Andrade , com a torre de 23 andares, com acervo, ao fundo (Foto de Gabriela Biló/Futura Press/Folhapress)
AR CONDICIONADO
Os livros serão higienizados e ficam separados, porque não dá para reparar o ambiente se não resolver o problema do ar condicionado. Qual o problema? A climatização tem que funcionar com parâmetros adequados de temperatura e umidade. Percebemos que esses parâmetros em alguns andares eram atingidos, mas em outros estavam fora do padrão. Por quê? Não sabemos se é erro de projeto de climatização; ou se o projeto está adequado, mas a instalação teve algum problema; ou se o projeto está adequado, a instalação está adequada, mas alguma coisa se desregulou. Está sendo feita uma análise de todo o sistema do projeto, de instalação e do funcionamento dele em cada andar, por engenheiros da Faculdade Politécnica da USP, além de um perito em climatização de acervos. Assim que esses pareceres estiverem concluídos, teremos de retrofitar o sistema, ver o que está faltando e instalar, se é que está faltando algo, para que a climatização atinja parâmetros adequados.
DIGITALIZAÇÃO
A Mário de Andrade está engatinhando, mal começou a digitalização do seu acervo. Digitalização é uma forma de dar acesso, e acessibilidade para mim é uma palavra-chave. No ano passado foi feita uma parceria com a Bibllioteca Mindlin, a biblioteca conseguiu um dinheiro de Harvard, US$ 30 mil, e nessa experiência, com US$ 30 mil, foram digitalizados 200 livros. Não é nada. Se contar que a Mário de Andrade deve ter no máximo 2.000 digitalizados, e que esses 2.000 estão digitalizados em linguagens diferentes, porque foram feitos por empresas diferentes, em épocas diferentes, por demandas diferentes, ou seja, além de não ser nada, você não dá autonomia à biblioteca para que possa durante um bom tempo se dedicar a esse setor de digitalização e atrelar a digitalização com formação e com aquisição de conhecimentos. Vejo na montagem do setor de digitalização, que passa a ser uma meta para essa gestão, não apenas a questão de serviço, digitalizar um livro, mas adquirir conhecimento, montar uma plataforma de pesquisa e de formação, principalmente para jovens da periferia, que hoje em dia nasce com computador na mão.
Consegui algo difícil que são os recursos humanos, pessoas que sabem absolutamente tudo em relação a isso. São três pessoas, mas já dá para começar. Um deles inclusive é um hacker. Ele fica indignado porque temos uma coisa que se chama Prodam. Todo os serviços da prefeitura são feitos via Prodam, que é uma empresa lenta em relação às demandas tecnológicas. Mesmo que você tivesse a digitalização de vento em popa, robôs, scanners, fazendo a coisa em escala hoje, eu não teria como armazenar e disponibilizar isso na internet porque não tenho servidor próprio, dependo de um serviço que monopoliza isso para toda a prefeitura e que se chama Prodam. Então nossa meta depende de uma ação casada. O pessoal da Prodam tem sempre muito boa vontade, é prestativo, mas não depende apenas da gente. Trouxemos recursos humanos, fizemos o plano, sabemos o que precisamos de equipamento e fizemos o orçamento, já sabemos onde vamos instalar isso, como vai funcionar o setor. Estou projetando no orçamento do ano que vem a compra desse equipamento. Para os equipamentos básicos, precisaríamos de R$ 800 mil.
Não penso em disponibilizar uma quantidade massiva num curto período de tempo. Entendo a digitalização como algo que demanda muito tempo, que envolve mudança de tecnologia, por isso não preciso fazer um investimento muito grande em tecnologia no começo, porque essa tecnologia vai ficando obsoleta. Se gastar muito dinheiro com isso, vou jogar dinheiro público fora. Tenho de atrelar esse processo a uma pesquisa. Ao mesmo tempo em que vou prestando serviço e dando mais acesso aos livros via disponibilização online, estou gerando pesquisa e fazendo com que o setor se auto-alimente com essas informações.
O plano é que nos próximos dois anos, a contar de 2014 até o início de 2016, tenhamos de 5.000 a 7.000 obras digitalizadas e tratadas. O setor de digitalização está sendo pensado para funcionar em parceria com um setor de edições na Mário de Andrade. Isso é uma forma de dar acesso principalmente ao livro raro, é você digitalizá-lo, tratar imagem e produzir fac-símiles desses livros.
Com a Mindlin, tivemos uma parceria e estamos tentando assinar um acordo para digitalizar algumas obras da nossa brasiliana, coisas que eles não têm. Porque não há sentido em digitalizar o que já está digitalizado, seja no acervo do IEB, de onde venho, seja da Mindlin. Se tem um livro raro digitalizado em algum desses acervos, não precisa fazer de novo. Vamos fazer uma seleção do que a Mindlin não tem e digitalizar os livros da nossa brasiliana lá. Vão ficar hospedados na plataforma Corisco, no site da Brasiliana, que é melhor do que a que a gente tem na prefeitura, Prodam. Eles serão referenciados com o logo Biblioteca Mário de Andrade Digital.
Sala Paulo Prado, onde estão 3.500 das 52 mil obras raras da instituição, prioridades na digitalização (Foto Ze Carlos Barretta/Folhapress)
ESPAÇO PARA CRIANÇAS
Encontrei certa resistência. A biblioteca vai completar 88 anos e nunca teve espaço para criança. O espaço para crianças na biblioteca circulante [com livros para empréstimo, no primeiro andar] é um pufe embaixo da escada, uma prateleira com meia dúzia de livros. Não é falta de recurso, não é falta de espaço, é uma decisão política. Criança não entra aqui, não tem espaço numa biblioteca como essa. Tive certeza disso quando bibliotecários vieram me dizer: “Já existe a Monteiro Lobato, é uma biblioteca infantil, por que trazer criança para cá?”. Falei o seguinte: “Não quero montar uma biblioteca infantil na Mário de Andrade, quero uma sala para crianças”.
Estamos limpando uma sala no térreo, com 100 m², com pias no fundo, em que dá para fazer oficinas. Convidei o pessoal do escritório de design Ovo para fazer um projeto de mobiliário. Vamos apresentar num telão 3D em outubro, durante um seminário sobre direito à infância e políticas culturais para criança. Eu gostaria de antecipar essa sala e conseguir um patrocinador. Ela não é cara, custa R$ 400 mil, R$ 500 mil, com tudo instalado. Hoje, se você tem filho e chega na biblioteca para fazer pesquisa, não traz o seu filho, porque não tem onde deixar. Com a sala, você pode ter a a opção de chegar no atendimento e pedir uma senha. Com essa senha, você senta na mesa onde tem o monitor mais próximo e digita a senha e tem a imagem da câmara na tela. Não vai precisar sair do seu posto de trabalho para ir até a sala ver o que está acontecendo com o seu filho. Você vai ter a imagem, on-line, simultânea, porque a câmera vai monitorar. O principal, o conteúdo, as atividades, serão discutidas com os pedagogos que virão ao seminário.
EVENTOS
A programação cultural é determinada por lei, a Biblioteca Mário de Andrade, na lei 15.052 de dezembro de 2009, é obrigada a ter uma programação cultural, a ter e incentivar exposições, montar cursos, seminários, fóruns.
Isso começou só depois da entrega do prédio, timidamente em 2011, e cresceu bastante em 2012. Mas a média de uso do auditório, neste primeiro semestre de 2013, foi de uma vez durante a semana e uma vez aos sábados de manhã. Já que a programação cultural é uma determinação por lei, a biblioteca não pode apenas ser receptiva em relação ao que é feito aqui dentro. Estávamos muito na condição de ser o balcão de receber eventos. Determinei com a equipe ser mais proativo em relação a isso. Nesse segundo semestre já começamos, teremos o seminário de cultura e infância, algo que nós propusemos. E teremos ciclos de conferências, como o Democracia na História, que já começou.
Isso não estava no orçamento. Todo o orçamento da Cultura de São Paulo estava concentrado no Gabinete, não só pra Mário. Quando você precisava de um evento, pedia e o secretário autorizava ou não. Não havia essa de “vou precisar para 2013 de R$ 100 mil para programação cultural”. Não tinha e não tem dinheiro, porque o orçamento deste ano foi projetado no ano passado. Mas estou satisfeito, porque minha perspectiva em março era não ter nada, e estamos com a programação praticamente fechada até dezembro. Neste ano ainda vamos ter o encontro sobre poesia ameríndia, curadoria do Sergio Cohn.
Outra coisa que notamos foi que o auditório da Mário de Andrade, pequeno, aconchegante, é ideal para uma sala de cinema primorosa, de 175 lugares. Estamos orçando uma tela profissional, um projetor 3D de alta definição, para que a sala entre no circuito de mostras de cinema. Isso também tem a ver com acessibilidade, assim como a digitalização e o espaço para crianças.
Auditório de 175 lugares, que a nova gestão pretende transformar em uma sala para o circuito de mostras de cinema de São Paulo (Foto Zé Carlos Baretta/Folhapress)
BRAÇO EDITORIAL
Criamos um conselho, com gente da academia e do mercado. Tem João Adolfo Hansen, Alcir Pécora, Paulo Martins, Marcos Augusto Gonçalves, editor, livreiro. Estamos batalhando para ter a Primavera dos Livros [evento organizado pela Libre, de editoras independentes] em setembro aqui na praça, e estamos com uma expectativa boa de que a praça se fixe como o lugar da Primavera.
O Juca Ferreira [secretário municipal de Cultura, na gestão Fernando Haddad] fez um pedido e endosso a opinião dele. Ele tem o entendimento de que hoje os acervos municipais, no Centro Cultural Vergueiro, Arquivo Municipal, Casa da Imagem, são muito procurados. Você chega lá, requisita o que quer para a produção do seu livro, numa editora particular ou comercial, executa a contrapartida do preço estabelecido em decreto, R$ 50 por imagem imagem, ou negociar uma contrapartida em exemplares.
O que não dá para entender é que você chega, pega as imagens, leva e faz um livro, sem nenhuma participação. A gente não viu projeto gráfico, a prova do livros, se a imagem está bem tratada. A biblioteca não tinha como acompanhar isso, mas agora tem. Temos olhos bem treinados para isso, dá para acompanhar o livro na boca da máquina, saber se a cor está certa. O Juca determinou que qualquer projeto editorial envolvendo acervos pertencentes à Secretaria Municipal de Cultura seja discutido com a Mário de Andrade. Nesse sentido é um braço editorial, não sei se o termo é muito adequado, um apoio.
A biblioteca pretende fazer edições próprias, teremos um selo. Além da revista que já editamos, queremos fazer outras coisas. Por exemplo, um livro com os destaques do acervo. A gente vai propor uma parceria com a Imprensa Oficial para editar, vai ter o selo Biblioteca Mario de Andrade Edições. A biblioteca é sempre referenciada como o lugar onde se guarda determinada edição que será usada em outra edição, mas não é vista como uma guardiã que cuida da forma como esse material será usado.
ORÇAMENTO
O de 2013 ficou em R$ 7 milhões, após a biblioteca ter projetado R$ 13 milhões, levando em conta que agora são dois prédios, com a hemeroteca. Para 2012 foram projetados R$ 11 milhões e vieram R$ 6 milhões. É insuficiente. Dá para custear a operação da biblioteca, mantém os funcionários e empresas terceirizadas. Você não tem nesse orçamento a possibilidade de ter recurso para uma ação emergencial. Vamos supor que alguém rasgue um livro raro, vou ter que esperar até o ano que vem para consertar ou ter que pedir? Assim também é impossível sustentar uma programnação cutlural. Projetamos para 2014 R$ 20 milhões para os dois prédios, sabendo que não vamos ter.
Nono andar da hemeroteca, onde está parte do acervo Folha; muito material ainda não está acessível ao público, por falta de catalogação (Foto Ze Carlos Barretta/Folhapress)
HEMEROTECA
Ela foi inaugurada, mas não foi habitada ainda, por várias razões. A gente dá atendimento a pesquisadores que querem fazer pesquisa sobre periódico, jornal, você liga, vem aqui e reserva o que quer. Mas não podemos ampliar esse atendimento porque o sistema de climatização do prédio ainda não foi recebido pela prefeitura. O sistema está em testes, que têm sido feitos a conta gotas, muito lentamente, pela empresa que instalou o sistema, e não têm sido bem sucedidos. Tem vazamento, tem água, não opera no padrão de resfriamento e umidade. A previsão é que isso seja entregue até o final do ano.
O teste é feito lá mesmo, tem que ligar e desligar. A empresa fala: “O sistema tem que ser ligado e ficar uma semana para entrar em balanço”. Mas em uma semana eu perco todo o acervo. Acho que vou ter um problema lá maior do que estou tendo aqui [com fungos] se ligar o ar condicionado. Ele não vai alcançar o padrão.
Sem o ar, você não consegue pôr funcionários lá dentro e ampliar o atendimento ao público. Tem que climatizar o acervo, se não ele fica na oscilação, depende do que acontece aqui fora. Agora estamos bem, está muito seco. Estamos com índice de 30%, preciso de até 50%. Para periódicos, quando está muito seco, o jornal começa a craquelar, ficar sólido. A climatização produz o ambiente em que você tem o índice de umidade e temperatura adequados para preservar jornal, uma coisa rapidamente deteriorável. Não conseguimos preservar porque não é papel, mas consigo uma sobrevida desse acervo até digitalizar. A permanência de uma hemeroteca é a digitalização. Agora, se eu ligo um ar que foi instalado, e parece que foi feito isso, desenhado como um ar condicionado de um shopping, se estiver mais frio que o necessário que se dane, seu corpo que se adapte. Em tese, o ar condicionado possibilita um ar mais limpo, filtrado. Quando você fica num ambiente com ar e sai com coriza, tem alguma coisa de errado. Isso vale para a gente e vale para o acervo.
Isso considerando que a Mário de Andrade é uma biblioteca privilegiada, a primadona das bibliotecas públicas de São Paulo. Mas as coisas foram sendo feitas sem que se pensasse na manutenção delas, na sustentabilidade. Por exemplo, o prédio da hemeroteca não é da Secretaria Municipal de Cultura, é um comodato, pertence à Secretaria Estadual. Há uma sessão de empréstimos que pode ser cancelada a qualquer momento. A prefeitura tem tantos prédios que poderia num ter sido feita uma permuta, toma o meu e recebo esse. Mas o prédio não é nosso. A rigor, uma disputa política pode fazer com que sejamos despejados.
IMAGEM ELITISTA
Além de conservadora, a Biblioteca Mário de Andrade tem uma imagem elitista. E ela tem uma imagem elitista porque ela é elitista. A biblioteca que o Mário de Andrade fez para São Paulo foi feita para a elite, historicamente. É reflexo de uma cidade conservadora, que só há muito pouco tempo vislumbra que exista cultura na periferia, manifestações que não são aquelas produzidas para seu deleite. As instituições são um pouco o espelhamento das relações em torno dela.
Costumo dizer que essa fachada, o corredor de cristal, nos deu uma fachada de vidro, e que a Mário de Andrade não seja transparente apenas na fachada. Os problemas têm que ser públicos, a biblioteca tem que ser apropriada pela sociedade. Historicamente, a Mário de Andrade foi de uma elite e ainda é. Cada pequena atitude, cada pequeno gesto, eles vão se somando, aí no total você tem uma coisa que é reflete um pouco o que é São Paulo, uma cidade conservadora, classe média, extremamente ensimesmada, que tem medo de partilhar o que tem. A cultura é vista como bem, não como transmissão. A biblioteca não é responsável por isso, mas tem refletido isso.